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21 de dezembro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Bird Box: Nossas Prisões Mentais
Conexões com o 2 e o 8 de Espadas do Tarô
Giancarlo Kind Schmid
Bird Box, produção da Netflix (dezembro de 2018), dirigido por Susanne Brie e roteiro de Eric Heisserer, thriller de sucesso estrelado por Sandra Bullock, em pouco tempo ganhou destaque nas mídias e entre os usuários da plataforma por tratar de temas incansavelmente explorados como mundo apocalíptico e "zumbis" sem que isso roube a cena, apostando mais no estilo "tensão psicológica".
Bird Box me recorda, em parte, o Ensaio Sobre a Cegueira de Saramago e, se envereda no universo do tipo "Eu Sou a Lenda", cuja destruição mundial se inicia com contaminações em massa, levando os indivíduos a cometerem suicídios. Não pretendo mergulhar você, leitor, num texto repleto de spoilers, mas minimamente estabelecer pontes simbólicas com dois arcanos menores do tarô que utilizarei como "pano de fundo" para entendimento da trama: o 2 de Espadas e o 8 de Espadas. Assim como surge a protagonista e seus filhos nas chamadas e trailers da película, esses dois arcanos mantém os olhos vendados como defesa ou mera proteção.
Bird Box - nossas prisões mentais - Giancarlo Schmid
Arte de apresentação do filme Bird Box
Em resumo, o contexto situa o expectador em um mundo pós-apocalíptico, cuja protagonista Malorie (Sandra Bullock) e seus filhos precisam chegar em um refúgio para escapar do Problema, criaturas que, ao serem vistas, fazem pessoas se tornarem extremamente violentas. De olhos vendados para não serem afetados, a família segue o curso de um rio para chegar em segurança ao seu destino.
A história envolve, nas entrelinhas, um tema incômodo e recorrente explorado mesmo em séries da Netflix como 13 Reasons Why: o suicídio. Suicídio como epidemia, o sinal do fim dos dias, não muito longe da realidade que vivemos hoje. Se tomarmos os três últimos arcanos numerados do naipe de Espadas (8, 9 e 10) se referem, exatamente, às nossas perturbações mentais ou psicológicas.
A pergunta que fica no ar é: os monstros existem mesmo ou são apenas nossas dores, traumas, perdas que cresceram e ocuparam nosso íntimo? Daí os personagens precisam vendar os olhos físicos para lançarem um olhar para dentro de si e encarar, verdadeiramente, os monstros que alimentamos e que muitas vezes nos tornamos, até sucumbirmos.
Na figura do 2 de Espadas temos o rio ao fundo, a única suposta saída para a protagonista salvar a si e seus filhos no filme. Mas, será que ela deseja salvá-los mesmo, já que vive uma gravidez indesejada? Mergulhar no rio é sinônimo de voltar às origens, como voltar ao útero, e recomeçar.
O Dois de Espadas no Tarot Mucha
O Dois de Espadas no Tarot Mucha
No 2 de Espadas o personagem cruza as espadas sobre o coração, claramente uma alusão ao conflito entre a razão e a emoção. Todo tempo Malorie precisa lidar com seus conflitos emocionais e se situar, às cegas, em seu destino com segurança. Imagine quão difícil é seguir, normalmente, por ambiente já conhecido em meio à escuridão, agora pense numa floresta inóspita, com criaturas ameaçadoras, e enfrentar sozinha um rio caudaloso? Nesse ponto do filme as ações da personagem a colocam numa condição insensível e egoísta, e nos joga a pergunta: o quanto somos mesquinhos e fazemos questão de não enxergar isso?
O 2 de Espadas revela essa parte da trama que simboliza nossas resistências e o receio de encarar a si e aos fatos, a dificuldade de encararmos nossas fragilidades e medos, e o impasse de seguir por terra firme ("o mais do mesmo") ou mergulhar no rio e romper o paradigma ou círculo vicioso (como diria o filósofo Heráclito, "um homem que mergulha no rio, uma vez que o deixa, nem ele e nem o rio serão os mesmos"). No 2 de Espadas temos uma realidade (dis)simulada, onde o pretenso impasse não é para provar quem está com a razão, mas para evocar que é impossível dar próximo passo sem ceder, abrir o coração e assumirmos nossa mea culpa diante de nossas agruras – as dores muitas vezes são produtos de nossas resistências.
Na trama Malorie disputa espaço entre o medo e a angústia. No 2 de Espadas há um falso conforto do personagem que se encontra sentado, mas de costas para o rio: não é apenas o que não estamos prontos para ver, mas, principalmente, o que negamos sentir. Lembro que as criaturas ameaçadoras se chamam "Problema" e a personagem do filme parece não querer encará-los; dá as costas para o rio como o faz com sua maternidade, nega a vida e vive imaturamente num mundinho egoísta e vazio de significados. Malorie precisa do rio, como se sofresse um novo "batismo", para renascer outra. Sabemos que só podemos crescer diante dos desafios e perante os problemas, e não na "pseudozona de conforto".
Partimos, daí, para a segunda parte, que é o 8 de Espadas.
A personagem se sente ameaçada e oprimida na proporção que a trama se revela. Ela precisa não só lidar com o novo, mas com o desconhecido - isso nos assusta. Malorie se afasta de sua felicidade na proporção que nega a sua realidade, já vive com vendas, porém, para os olhos da alma. Ela é um potencial suicida amanhã, fadada ao abandono pela sua desumanidade. Seu suicídio seria fruto do esvaziamento de significados da vida.
Oito de Espadas no Radiant Waite Tarot
Oito de Espadas no Universal Waite Tarot
Quantos de nós não estamos amarrados a nossos empregos, mecanicamente seguindo a vida, nos afastando do amor de nossos filhos ou nosso par? O 8 de Espadas diz respeito a isso, de alguma forma. O personagem está também vendado, amarrado, tendo gládios à sua volta como grades de uma prisão, porém com os pés livres em meio à lama. A lama é esse indício de sucessivas tentativas de manter os pés em terra firme e, ao mesmo tempo, procurar mergulhar no rio. Ninguém quer se sujar ou "fazer o trabalho sujo" quando o assunto é lidar com uma vida de aparências cuja infelicidade é substituída pelo desejo de autoproteção para provarmos a todos que está tudo bem. Vivemos mecanicamente cumprimentando e sendo cumprimentados com um pálido "oi, tudo bem?" e "tudo bem, e você?".
Suicidas são forçados a viver nesse mundo de "felicidade industrializada". Afinal, admitir que nada vai bem é como assinar embaixo que você fracassou na sua meta de autorrealização. No filme os supostos monstros (que são projeções mentais via inconsciente coletivo), uma vez encarados, despertam agressividade em suas vítimas até sucumbirem a autodestruição. Não sabemos mais lidar com nosso mal-estar e raiva, negamos, acintosamente, nossa raiva, medos, fraquezas, inseguranças... Precisamos nos entupir de medicamentos e autoajuda para tentarmos nos sentirmos melhores. Acabamos como no 8 de Espadas: amarrados e mergulhados na lama. Que tal voltarmos para o rio e não repetirmos o padrão? O rio dará um jeito nessa sujeira toda!
Essa é a parte delicada do filme: a personagem precisa seguir em frente, encontrar outros indivíduos que seguem também "às cegas", para reumanizar-se. Você deixa os monstros para trás na proporção que os compreende. Sua raiva não deve ser negada, mas aceita e compreendida. Raiva acumulada vira ódio. E ódio, leva mais cedo ou mais tarde o indivíduo à sua derrocada.
No 8 de Espadas há um indicador que é continuar em estado de letargia e deslizar para os pesadelos do 9 de Espadas, ou simplesmente cortar o mal pela raiz no 10 de Espadas. Importante frisar que o 10 de Espadas é o "fim da dor ou a dor do fim", ou você mata, ou você morre. Para tudo há uma escolha. Nessa fase da trama a personagem precisa olhar sua vida não mais com os olhos físicos, mas com os olhos do coração.
Nove e Dez de Espadas no Radiant Waite Tarot
Nove e Dez de Espadas no Radiant Waite Tarot
O filme toca no fator desumanidade e nos lança a pergunta: será que não estamos nos matando porque o amor deixou de ser o oxigênio que sustenta o mundo? Todos nós precisamos de ganhar nosso dinheiro, ninguém é obrigado a ter filhos, mas num mundo de telas, onde fixamos mais tempo nosso olhar em celulares e computadores, estamos deixando de prestar atenção no próximo.
Nossas gaiolas são muitas vezes mentais, fruto do gradil imposto por nossas crenças. Bird Box valoriza esse detalhe e desmistifica a felicidade e o sucesso, provando que, para irmos além, precisamos nos desencostar de nossas regras e convenções, lançarmos um olhar mais digno, amoroso e humano para o próximo (e para nós mesmos), e aceitarmos que não somos essa luz divina toda que dizem que somos, na realidade somos espectros sombrios, administrando sofrimentos, à procura da saída. Que tal começarmos pela metáfora do rio?
Giancarlo Kind Schmid 
é tarólogo, astrólogo, numerólogo e terapeuta.
www.taroterapia.com.br  e  www.facebook.com/taroeterapia
Outros trabalhos seus no Clube do TarôAutores
Edição: CKR – 5/02/2019
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