Coringa é o filme dirigido por Todd Philips, co-produzido por Martin Scorsese e estrelado por Joaquin Phoenix e Robert De Niro, com estreia mundial no dia 3 de outubro de 2019. Desde a interpretação de Heather Ledger do personagem no filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) não acontecia tanta sensação em torno de um filme envolvendo esse vilão, muitos sequer acreditavam que surgiria em tão pouco tempo ator à altura para tal interpretação. Mas, a crítica tem se mostrado surpresa e muito positiva nos diversos festivais (em Veneza, o filme foi aplaudido de pé por ininterruptos 8 minutos) em que a obra tem sido apresentada. Para o público geral, os dois trailers provam que Phoenix não apenas redimensionou e conferiu novo status com atuação própria e impecável, sem repetir o padrão do Ledger, revelando um homem que, dia a dia, vai perdendo sua identidade perante a violência de uma sociedade cega e insensível, até culminar num temido psicopata ávido de caos e terror.
Heather Ledger como Coringa em “Batman: Cavaleiro das Trevas”
e Joaquin Phoenix como Coringa em “Coringa”.
O filme é inspirado na história em quadrinhos escrita pelo famoso e controverso escritor Alan Moore (desenhos de Brian Bolland) que revela uma face única e inexplorada do Coringa em outras HQs. O enredo não seguirá à risca o roteiro de Moore, mas se baseará na famosa frase “basta um dia ruim, para tornar o mais são dos homens um lunático” que inspira a película de Todd Philips.
“A Piada Mortal” de Alan Moore.
Tal como na HQ, o personagem central de nome Arthur Fleck (no filme) é um comediante frustrado/fracassado que se sente impelido a fazer todos rirem, mesmo diante das agruras da vida. Mas, além de não conseguir, diante de sucessivos esforços, tornar o mundo um lugar melhor de se viver (no caso, a cidade onde vive, a sombria e decadente Gothan City, uma espécie de Nova York em colapso), sofre todo tipo de violências (físicas, psicológicas, morais) e sucessivas perdas (emprego, sua doente mãe e sua namorada), caindo no descrédito, relegado à rejeição e isolamento até o ato final onde a loucura o potencializa transformando-o numa contrastante figura de roupas de cores berrantes, maquiagem de palhaço ocupada por uma personalidade fria e atroz. Além disso, Arthur é portador de uma síndrome chamada afeto pseudobulbar ou labilidade emocional, que se caracteriza por uma vontade descontrolada de chorar e de rir, mesmo sem que haja um contexto para isso, o que atrai a indignação e violência contra si.
Trailer do filme Coringa
Do ponto de vista junguiano, o Coringa é uma imagem arquetípica do trickster (trapaceiro), um pregador de peças, de natureza esperta e brincalhona, porém, tomado por um arquétipo de nome sombra (aquilo que não é aceito ou conscientizado por nós, que se potencializa reprimido no inconsciente), que o torna perigoso, ameaçador, caótico, destruidor e ausente de sentimentos e de dor.
Trickster nos contos, fábulas e histórias infantis é um agente antiparadigmático, que desobedece, rompe as regras e provoca uma revolução no meio em que vive. Os truques pregados pelo trickster normalmente acabam gerando resultados positivos ao final, mas não no caso do Coringa, cuja natureza sombria intenta desagregar e trazer à tona a loucura social reprimida, sob a forma de violentos rompantes sangrentos, afrontando os poderes vigentes, desestabilizando instituições, a política local e provocando perdas irreparáveis para os grandes magnatas e todo-poderosos. O Coringa não está preocupado em ganhar poder, status ou dinheiro, apenas quer ser visto, enxergado, gerar revoltas, e o fará deixando sua marca indelével: seu humor negro.
O arcano do Louco e sua função de coringa no baralho comum
Cartas dos tarôs Rider-Waite e Marselha
Tomando o tarô, me basearei nas três facetas famosas do Coringa, três estágios psicológicos do personagem: o comediante, o palhaço e o louco (bobo da corte). A carta que há de representar as três é o arcano “sem número” (“O Tolo” ou “O Bobo” ou, ainda, “O Louco”) associado exatamente ao coringa do baralho lúdico de naipes, cuja numeração nos baralhos mais modernos pode ocupar o zero, o vinte e um ou o vinte e dois. Esse arcano além de trazer consigo aspectos mais inocentes do trickster, também carrega a natureza de puer aeternus (criança eterna), outro arquétipo, que evoca a criança interior, em sua manifestação livre, espontânea, amoral e original. Cada ciclo do Coringa é, aqui, representado por um par de arcanos, para sua identificação. Lembro que o arcano “sem número” está diante do abismo e parece não perceber os riscos inerentes: assim é a loucura, você transita no limiar entre o consciente e o inconsciente, balançando ao vento, prestes a mergulhar a qualquer momento nas profundezas escuras da psique.
O Comediante
"Eu pensava que minha vida fosse uma tragédia. Agora me dou conta de que é uma comédia." (Coringa).
Assim como na HQ “A Piada Mortal” de Alan Moore, no filme Coringa o comediante Arthur Fleck tentará a todo custo cumprir o seu papel de “fazer as pessoas rirem”. Mas, sua vida pessoal é tão cheia de dores e pesadelos, que as suas piadas refletem seu descontentamento e vazio interior. Ele apela para stand-ups em barzinhos ou clubes noturnos, quase sempre ridicularizado e/ou humilhado. Fleck não consegue criar piadas apoiadas num humor leve ou despretensioso, normalmente são carregadas de humor negro, cujas sugestões refletem sua alma atormentada e beirando a insanidade.
O comediante no filme Coringa (Joker)
O comediante existe para ocultar uma criança que teve uma infância repleta de privações, maus tratos e muita violência. Como no trailer, a frase que é dita pelo personagem “minha mãe me disse que eu tenho um destino: fazer as pessoas sorrirem”, mas como manter um sorriso no rosto se você sangra todo tempo por dentro? Os arcanos que refletem esse estado psicológico do comediante é o O Louco e o Dois de Ouros: é a tentativa de ser algo que não se consegue ser, “viver na corda bamba”, oscilar, procurar entreter sem conseguir amenizar suas incertezas ou inseguranças, viver entre dois mundos: o exterior onde é preciso fazer sorrir e o interior que precisa lidar constantemente com a dor do abandono, ao lidar com uma mãe doente e psicologicamente frágil, sem saber do dia de amanhã.
O Louco e o Dois de Ouros
O Palhaço
"Sorria, porque confunde as pessoas. Sorria, porque é mais fácil do que explicar o que está te matando por dentro". (Coringa)
Como alternativa, Fleck trabalha durante o dia vestido de palhaço promovendo serviços e/ou produtos do comércio local. Também realiza trabalhos voluntários em hospitais para crianças e procura sempre brincar com todos à volta. Mas, exposto à violência da rua, Fleck sofre todo tipo de agressão, moralmente num dia, fisicamente no outro...
Flek vestido de palhaço
O palhaço tem um propósito no filme, em tom acusativo e crítica social quando é representa uma sociedade exausta, cansada de desmandos e descasos, algo muito similar visto no filme, não por acaso, do também genial Alan Moore, V de Vingança: as máscaras são protestos das faces incógnitas, assim como aparece nos trailers do filme Coringa, uma multidão explodindo em violência dentro de um trem (ou metrô) e em frente ao teatro de Gothan, esse estopim certamente é aceso por Fleck já em transição para o Coringa, quando vê suas necessidades negadas pelo Estado e o experimenta a indiferença de poderosos como Thomas Wayne (o pai de Batman) que o trata, como tantos outros, com desdém e violência. O palhaço é uma alegria da satirização do sistema, tal como visto na placa durante o segundo trailer “somos todos palhaços”. Neste estágio, Fleck começa a se identificar com essa persona e não mais com a do comediante: é o “pré Coringa”, aquele que usará uma maquiagem e roupas exóticas para chocar e iniciar a desordem. O palhaço em Fleck é o grito dos miseráveis, dos excluídos, dos invisíveis.
O Louco e o Valete de Paus
A combinação de arcanos que reflete esse estágio é O Louco e o Valete de Paus que representa a alegria passageira, fugaz, o impulso infantil e o entusiasmo momentâneo. Essa combinação não tem consciência dos seus atos e pode levar a consequências perigosas, por falta de bom senso e nulidade da noção dos riscos.
O Louco (Bobo da Corte ou Coringa)
"A loucura é como a gravidade, só precisa de um empurrãozinho." (Coringa).
Flek assume o coringa, o lado sombra do Louco
Neste estágio, o personagem deixa de ser Fleck para assumir definitivamente a persona do Coringa. Fleck tinha dois caminhos: matar ou morrer. Em sua psique, optou por perder sua identidade e ser tomado integralmente pela sombra. Toda repressão e complexos que nutriu por anos o transforma num poderoso e temível ente sem escrúpulos, capaz de matar sem piedade e cometer barbáries só por diversão. O coringa é a carta do baralho que completa certas combinações na mesa como canastras, trincas, por exemplo, significando que, socialmente, ele assume qualquer condição e em qualquer lugar, pode se passar por outro personagens (como a falsa enfermeira no filme Batman: O Cavaleiro das Trevas interpretada por Heather Ledger).
O Louco, o Ás de Espadas e o Diabo
Coringa é aquele que ocupa o espaço vazio, onde ninguém quer ficar, ninguém quer assumir ou finge não existir. Por um lado, ao enfrentar Batman, enfrenta também seu inimigo social que é Thomas Wayne, o pai de Bruce Wayne (o Homem-Morcego); por outro, é enfrentar o sistema, as falsidades ideológicas, as injustiças sociais e o descaso institucional. O problema é que, a cada passo que o Coringa dá, ele enlouquece, transita entre as alas psiquiátricas do sanatório Arkhan, sempre conseguindo escapar, e retorna pior e mais cruel. Como se diz, “o Coringa ri na cara da morte”. Ele não tem medos, não sente dor, é imune a toxinas, é superinteligente e um estrategista inigualável. Sua sombra o torna um monstro de proporções desumanas, toca o terror e o caos apenas por prazer. O desejo do Coringa é que todos enlouqueçam como ele. Os arcanos aqui combinados são “O Louco” (com um toque de “O Diabo”) e o “Ás de Espadas”: tudo é lícito, não há limites, a mente opera a favor da desordem, do caos e da revolução explosiva capaz de tocar fogo numa cidade já exausta e sem esperanças – Gothan City.
Coringa, certamente, será indicado a, pelo menos, 4 óscares, levando ao menos três deles: melhor ator, melhor filme e melhor fotografia. É esperar para ver. O porquê do sucesso de um filme que aborda a vida de um supervilão? Simples: é a resposta inconsciente de uma sociedade cansada de governantes pouco afeitos ao aspecto humano e cega às necessidades do próximo. Coringa não é um filme de confronto entre super-heróis e vilões, é um história que aborda os conflitos entre a sanidade e a loucura, ganhando esta última, mergulhando o expectador na psicopatia de alguém que, toda sua vida, apenas quis fazer todos rirem. Afinal, “por que está tão sério?”.
Giancarlo Kind Schmid
é tarólogo, astrólogo, numerólogo e terapeuta,
pós-graduado em
Psicologia Analítica e Filosofia, formado em Psicanálise e em Letras www.taroterapia.com.br e www.facebook.com/taroeterapia
Outros trabalhos seus no Clube do Tarô: Autores