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21 de dezembro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


O Mago, o arcano da criatividade e da atenção
 
O texto a seguir é a transcrição de um capitulo da obra de Valentin Tomberg, Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarô, publicado pela Paulus Editora, 5ª ed., 2005, págs. 21-37.
Trata-se, até o momento, da mais importante obra sobre o simbolismo das cartas, numa visão que o Autor define como hermetismo cristão. (Veja resenha e biografia do Autor). O texto estimula a reflexão do leitor para aprofundar a compreensão dos significados, não só das cartas do Tarô, mas também do pensamento simbólico e dos ensinamentos esotéricos.
O livro encontra-se à venda na www.loja.simbolika.com.br, parceira do site Clube do Tarô.
 
Meditações sobre o primeiro arcano do Tarô - O Mago
Valentin Tomberg
 
O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não
sabes de onde vem nem para onde vai – assim acontece
com todo aquele que nasceu do Espírito.   (Jó 3,8)
"Nessa noite feliz,
Eu me mantinha sozinho, ninguém me via.
E eu não via nada

Para me guiar, senão a luz
Que brilhava no meu  coração"
(São João da Cruz, Cântico da Alma, estrofe III)
 
Caro Amigo Desconhecido,
As palavras do Mestre citadas acima serviram-me de chave para a compreensão do primeiro Arcano Maior do Tarô: "O Mago", que é, por sua vez, a chave de todos os outros Arcanos Maiores. Por isso eu as coloquei como epígrafe antes desta carta. Citei, em seguida, uma estrofe dos "Cânticos da Alma" de são João da Cruz, porque ela tem o poder de despertar as camadas profundas da alma para as quais é preciso apelar, quando se trata do primeiro Arcano do Tarô e, consequentemente, de todos os Arcanos Maiores. Porque os Arcanos Maiores são símbolos autênticos, isto é, "operações mágicas, mentais, psíquicas e morais" que despertam noções, idéias, aspirações e sentimentos novos, o que significa que eles exigem uma atividade mais profunda do que a do estudo e a da explicação intelectual. Por isso, para aproximar-se deles, é necessário manter-se num estado de recolhimento profundo e sempre renovado. Quando alguém medita sobre os Arcanos do Tarô, as camadas profundas e íntimas de sua alma se tornam ativas e dão seus frutos. É pois necessária a "noite" da qual fala são João da Cruz, na qual a alma "se mantém em segredo" e na qual deve atirar-se toda vez que medita sobre os Arcanos do Tarô. E trabalho que deve ser realizado na solidão e que convém aos solitários.
Le Bateleur - O Mágico - O Mago
O MAGO - Le Bateleur (em francês) significa Prestidigitador, Mágico.
Pag. 22:
Os Arcanos Maiores do Tarô não são alegorias nem segredos; as alegorias são, com efeito, a representação figurativa de uma noção abstrata; quanto aos segredos, são fatos, procedimentos, práticas e doutrinas quaisquer que alguém guarda para si, embora possam ser compreendidos e praticados por outros, aos quais seu dono não quer revelá-los. Os Arcanos Maiores do Tarô são símbolos autênticos. Eles ocultam e, ao mesmo tempo, revelam seu sentido na proporção da profundeza do recolhi­mento da pessoa que os medita. O que eles revelam não são segredos, isto é, coisas ocultadas pela vontade humana, mas arcanos. Arcano é aquilo que alguém deve "saber" para ser fecundo em determinado domínio da vida espiritual, aquilo que deve estar ativamente presente em nossa consciência – ou mesmo em nosso subconsciente – para nos tornar capazes de fazer descobertas, de gerar idéias novas, de conceber temas artísticos novos, numa palavra, para nos tornar fecundos em nossos esforços criativos, e isso em qualquer domínio da vida espiritual. O Arcano é um "fermento" ou uma "enzima" cuja presença estimula a vida espiritual e anímica do homem. E os símbolos são os portadores desses "fermentos" ou dessas "enzimas" e os comunicam – se o receptor for capaz de recebê-los, isto é, se se sentir "pobre de espírito" e não sofrer da doença espiritual mais grave: a suficiência.
Se o arcano é superior ao segredo, o mistério é superior ao arcano. O mistério é mais do que um "fermento" estimulante. Ele é um acontecimento espiritual comparável ao nascimento ou à morte física, é a mudança total da motivação espiritual e psíquica ou do plano da consciência. Os sete sacramentos da Igreja são as cores prismáticas da luz branca de um único Mistério ou Sacramento, o do segundo nascimento, que o Mestre ensinou a Nicodemos na conversa iniciática noturna com ele. E isso que o Hermetismo cristão entende por "Grande Iniciação".
Não é necessário dizer que ninguém inicia os outros, se entendermos por "Iniciação" o Mistério do segundo nascimento ou o Grande Sacramento. A Iniciação vem do alto e tem o valor e a duração da eternidade. O Iniciador está no alto; cá em baixo só se encontram condiscípulos e estes se reconhecem no amor que têm uns aos outros. Também não existem Mestres, porque existe um só Mestre, que é o Iniciador que está no alto. Sem dúvida, sempre existem mestres que ensinam suas doutrinas e iniciadores que comunicam alguns de seus segredos a outros, que se tornam, por sua vez, "iniciados", mas tudo isso não tem nada a ver com o Mistério da Grande Iniciação.
Por isso o hermetismo cristão, enquanto iniciativa humana, não inicia ninguém. Entre os hermetistas cristãos, ninguém se arrogará o título e as funções de Iniciador ou de Mestre. Porque todos são condiscípulo, e cada um é mestre de cada um, sob algum aspecto – como cada tini é discípulo de cada um sob outro aspecto. Não podemos fazer mais do que seguir o exemplo de santo Antão, o Grande, que "se submetia de boa vontade aos zelosos (ascetas) que ia visitar e se instruía junto deles na virtude e na ascese de cada um. Contemplava em um a amabilidade, em outro a assiduidade à oração; neste via a paciência, naquele o amor ao próximo; em um observava as vigílias, em outro a aplicação à leitura; admirava um pela sua constância, a outro por seus jejuns e por seu sono sobre a terra nua. Observava a mansidão de um e a magnanimidade de outro; em todos notava a devoção a Cristo e o amor mútuo. Assim, satisfeito, voltava para seu eremitério, condensando e se esforçando por exprimir em si mesmo as virtudes de todos..." (Vida de santo Antão por santo Atanásio, op. cit., 4).
Pag. 23:
Esse deve ser também o comportamento do hermetista cristão no que se refere aos conhecimentos e às ciências – naturais, históricas, filosóficas, filológicas, teológicas, simbólicas e tradicionais – que se resume em aprender a arte de aprender.
Ora, são os Arcanos que nos estimulam e dirigem na arte de aprender. Nesse sentido, os Arcanos Maiores do Tarô são uma escola completa e inestimável de meditação, de estudos e de esforços espirituais – uma introdução magistral à arte de aprender.
Caro Amigo Desconhecido, o hermetismo cristão não tem, pois, a pretensão de rivalizar com a religião, nem com as ciências oficiais. Aquele que procurar nele "a verdadeira religião", "a verdadeira filosofia", "a verdadeira ciência" errará o endereço. Os hermetistas cristãos não são senhores, mas servos. Não têm a pretensão – algo pueril – de se elevarem acima da fé santa dos fiéis ou ainda dos frutos obtidos pelos esforços admiráveis dos trabalhadores da ciência, nem acima das criações do gênio artístico. Não têm o segredo das descobertas futuras das ciências. Por exemplo, ignoram, como todos, o remédio eficaz contra o câncer.
Eles reconhecem igualmente a superioridade de um Francisco de Assis, que era homem da fé chamada "exotérica". Sabem que cada um que tem uma fé sincera é um Francisco de Assis em potência... Os homens da fé, da ciência e da arte são superiores a eles em vários pontos essenciais. Os hermetistas o sabem e não se gloriam de serem mais, de crerem mais, de saberem mais ou de poderem mais. Não guardam em segredo uma religião que lhes seja própria, a fim de substituírem as religiões existentes, ou uma ciência própria para substituírem as ciências atuais, ou artes próprias para substituírem as belas-artes de hoje ou de amanhã. O que eles possuem não comporta vantagens tangíveis ou uma superioridade objetiva em relação à religião, à ciência e à arte; o que eles têm é apenas a alma comum da religião, da ciência e da arte. Em que consiste essa missão de conservar a alma comum da religião, da ciência e da arte? Respondo com um exemplo.
Caro Amigo Desconhecido, sabes que na Alemanha, na França e em outros países muitos preconizam a doutrina chamada das "duas igrejas", a igreja de Pedro e a igreja de João, ou das "duas épocas", a época de Pedro e a época de João. Sabes também que essa doutrina ensina o fim – mais ou menos próximo – da igreja de Pedro, ou do papado, seu símbolo visível, a ser substituído pelo espírito de João, o discípulo amado do Mestre, aquele que, inclinado sobre seu peito, ouviu as batidas de seu coração. Assim a igreja "esotérica" de Pedro daria lugar à igreja "esotérica de João", que seria a da liberdade perfeita.
Pag. 24:
Ora, João, que se submeteu voluntariamente a Pedro como chefe e príncipe dos apóstolos, não foi seu sucessor depois de sua morte, em­bora tenha sobrevivido a ele por muitos anos. O discípulo amado, que ouviu as batidas do coração do Mestre, é e será sempre o representante e o guardião desse coração – e como tal não foi, não é e jamais será o chefe ou a cabeça da Igreja. Porque como o coração não é chamado a substituir a cabeça, do mesmo modo João não é chamado a suceder a Pedro. O coração conserva bem a vida e a alma, mas é a cabeça que toma as decisões e que dirige e escolhe os meios para a execução das tarefas do organismo todo – cabeça, coração e membros.
A missão de João consiste em conservar a vida e a alma da Igreja – em viver até a segunda vinda do Senhor. Por isso João nunca pretendeu e nunca pretenderá ter a função diretiva do corpo da Igreja. Ele vivifica esse corpo, mas não dirige suas ações.
São Pedro e São João

São Pedro e São Paulo - duas missões distintas

Ora, o hermetismo, a tradição hermética viva, guarda a alma comum da verdadeira cultura. Insisto em acrescentar: os hermetistas ouvem – e, às vezes, compreendem – o bater do coração da vida espiritual da humanidade. Eles só podem viver como guardiães da vida e da alma comum da religião, da ciência e da arte. Não têm nenhum privilégio em nenhum desses domínios; os santos, os verdadeiros sábios e os artistas de gênio são superiores a eles. Mas eles vivem para o mistério do coração comum que bate no fundo de todas as religiões, de todas as filosofias, de todas as artes e de todas as ciências passadas, presentes e futuras. E, inspirando-se no exemplo de João, o discípulo amado, não pretendem e jamais pretenderão exercer papel de direção na religião, na ciência, na arte, na vida social ou na política; mas velam constantemente para não perderem nenhuma ocasião de servir a religião, a filosofia, a ciência, a arte e a vida social e política da humanidade e para que lhes seja infundido o sopro da vida de sua alma comum – em analogia com a administração do Sacramento da Santa Comunhão. O hermetismo é – e é somente – um estimulante, um "fermento" ou uma "enzima" no organismo da vida espiritual da humanidade. Nesse sentido, ele é em si mesmo um Arcano, isto é, o antecedente do Mistério do segundo nascimento ou da Grande Iniciação.
Eis qual é o espírito do hermetismo. E é nesse espírito que voltamos agora ao primeiro Arcano Maior do Tarô.
Em que consiste essa primeira lâmina?
Um jovem, tendo na cabeça um grande chapéu em forma de lemniscata, está de pé atrás de pequena mesa, sobre a qual se encontram peque­no vaso amarelo, três pequenos discos amarelos, quatro discos vermelhos, um dos quais dividido ao meio por um traço, um copo vermelho com dois dados, uma faca fora da bainha e uma bolsa para guardar pequenos objetos. O jovem – que é o Mago – tem uma varinha em sua mão esquerda e uma bola ou moeda amarela em sua mão direita. Ele segura esses dois objetos com despreocupação perfeita, sem apertá-los nem demonstrar qualquer sinal de tensão, de indecisão, de pressa ou de esforço.
Pag. 25:
Ele age com espontaneidade perfeita – trata-se de jogo, não de trabalho – e nem sequer segue os movimentos de suas mãos; seu olhar se dirige para outro lugar.
Essa é a lâmina.
Que a série dos símbolos, isto é, dos reveladores, dos arcanos, que é o jogo do Tarô, se abra com uma figura representando um mago – um pelotiqueiro em ação é, sem dúvida, surpreendente! Como explicá-lo?
O primeiro Arcano – princípio subjacente dos outros vinte e um Arcanos Maiores do Tarô – é o da relação de esforço pessoal e da realidade espiritual. Ele está em primeiro lugar na série porque quem não o compreender (isto é, quem não o entender na prática cognitiva e realizadora) não saberá o que fazer com os outros arcanos, visto que é o Mago que é chamado a revelar o método prático, válido para todos os arcanos.
Ele é o "Arcano dos Arcanos" no sentido de que revela o que é necessário saber e poder para se entrar na escola dos exercícios espirituais constituídos pelo conjunto do jogo do Tarô, a fim de que se tire algum proveito dele.
Com efeito, o princípio primeiro e fundamental do esoterismo (isto é, da vida da experiência da realidade do Espírito) pode ser enunciado assim:
 
Aprendei primeiro a concentração sem esforço; transformai o trabalho em jogo; fazei com que o jugo que aceitastes seja suave e que o fardo que carregais seja leve!
 
Este conselho, ou mandamento, ou advertência, como quiserdes, é muito importante; ele é atestado pela sua fonte original, as palavras do Mestre: " O meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (Mt 11,30).
Examinemos as três partes do enunciado acima, a fim de penetrarmos o Arcana da "distensão ativa" ou do "esforço sem esforço". "Aprendei primeiro a concentração sem esforço". Qual é o sentido prático e teórico desse enunciado?
A concentração, enquanto capacidade de fixar o máximo de atenção no mínimo de espaço (Goethe diz que aquele que quer realizar algo de sólido e hábil deve concentrar num ponto mínimo o máximo de. força); é a chave prática do êxito em qualquer domínio. Neste ponto estão de acordo a pedagogia e a psicoterapia modernas, as escolas de oração e de exercícios espirituais franciscana, carmelita, dominicana e jesuíta, as escolas ocultistas de toda espécie, enfim a ioga hindu antiga e todos os outros métodos. Patânjali, em sua obra clássica sobre ioga, enuncia em sua primeira frase a essência prática e teórica da ioga – "o primeiro arcano" ou a chave da ioga – como segue – Ioga citta vritti nirodha, "a ioga é a supressão das vacilações da substância mental" – ou, em outros termos, a arte da concentração. Porque as vacilações (vritti) da "substância mental" (citta) se verificam automaticamente. Esse automatismo nos movimentos do pensamento e da imaginação é o contrário da concentração. Ora a concentração só é possível ao preço e com a condição da tranquilidade e do silêncio do automatismo do intelecto e da imaginação.
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O "calar-se" precede, pois, o "saber", o "poder" e o "ousar". Por isso a escola pitagórica prescrevia o silêncio de cinco anos aos principiantes ou aos "ouvintes". Ninguém ousava falar antes de saber e poder, antes de ter dominado a arte de calar-se, isto é, a arte da concentração. A prerrogativa de "falar" pertencia àqueles que não falavam mais automaticamente, movidos pelo jogo do intelecto e da imaginação, mas que podiam suprimi-lo, graças à prática do silêncio interior e exterior, e que sabiam o que diziam – sempre graças à mesma prática. O silêncio praticado pelos monges da Trapa e prescrito durante o tempo de "retiro", de modo geral, a todos os que nele tomam parte, é a aplicação da mesma regra-verdade: "A ioga é a supressão das vacilações da substância mental" ou ainda "a concentração é o silêncio voluntário do automatismo intelectual e imaginário".
É necessário distinguir duas espécies de concentração, essencialmente diferentes. Uma é a concentração desinteressada; a outra, a concentração interessada. A primeira é a da vontade libertada das paixões, das obsessões e dos apegos escravizadores, ao passo que a outra é o resultado de paixão, de obsessão ou de apego dominadores. Um monge no recolhimento da oração e um touro enraivecido estão concentrados, um, porque está na paz do recolhimento; o outro, porque está dominado pela raiva. Também as paixões fortes levam, pois, a alto grau de concentração. Assim os ávidos, os avaros, os orgulhosos e os maníacos denotam às vezes concentração notável. Na verdade, trata-se não de concentração, e sim de obsessão.
A verdadeira concentração é ato livre na luz e na paz e pressupõe vontade desinteressada e desapegada. Porque o fator determinante e decisivo da concentração é o estado da vontade. Por isso a ioga, por exemplo, exige a prática do iama e do niiama (iama são as cinco regras da atitude moral; niiama são as cinco regras da mortificação) antes da preparação do corpo para a concentração (respiração e posturas), e a prática de três graus da concentração como tal (dharana, dyana e sauradhi – concentração, meditação e contemplação).
São João da Cruz e santa Teresa de Ávila não se cansam de repetir que a concentração necessária para a oração espiritual é fruto da purificação moral da vontade.
São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila
São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila
E, pois, inútil o esforço para se concentrar, se a vontade está tomada por outra coisa. As "oscilações da substância mental" jamais poderão ser reduzidas ao silêncio, se a vontade não lhes infundir seu silêncio. É só a vontade silenciosa que torna efetivo o silêncio do intelecto e da imaginação na concentração. Por isso, os grandes ascetas são também grandes mestres da concentração.
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Tudo isso é evidente. Mas o que nos ocupa aqui não é só a concentração em geral, mas também e sobretudo a concentração sem es/orço. Que vem a ser ela?
Considerai o equilibrista na corda. E evidente que ele está completamente concentrado, do contrário, cairia por terra. Sua vida está em jogo, e só a concentração perfeita pode preservá-la.
Acreditais, porém, que o seu intelecto e a sua imaginação se preocupam com o que ele faz? Credes que ele reflete, imagina, calcula e planeja cada passo?
Se o fizer, cairá. Ele precisa eliminar toda atividade do intelecto e da imaginação para evitar a queda; precisa "suprimir as oscilações da substância mental" para poder exercer sua profissão. Durante seus exercícios acrobáticos, a inteligência de seu sistema rítmico – respiratório e circulatório – substitui a do seu cérebro. Trata-se, em última análise, de milagre – do ponto de vista do intelecto e da imaginação – análogo ao de são Dionísio, apóstolo dos gauleses e primeiro bispo de Paris, que a tradição identifica com são Dionísio Areopagita, discípulo de são Paulo. Ele teve "a cabeça separada do corpo a machadadas, diante da estátua do deus Mercúrio, mas logo se levantou, tomou a cabeça em suas mãos e, guiado por um anjo, caminhou longa distância, da colina de Montmartre até o lugar onde hoje repousam os seus ossos por escolha dele e da providência divina" (Jacques de Voragine, La Legende Dorée).
Ora, também o equilibrista, enquanto exerce o seu ofício, tem a "cabeça" – isto é, o intelecto e a imaginação – separada do corpo e caminha de um ponto a outro, levando a cabeça em suas mãos, guiado por outra inteligência, que age pelo sistema rítmico do corpo.
Para o equilibrista, para o pelotiqueiro, para o mago, a arte e a habilidade, no fundo, são análogas ao milagre de são Dionísio, porque, para ele, como para são Dionísio, trata-se da transposição do centro da consciência diretiva da cabeça para o peito – do sistema cerebral para o sistema rítmico.
Ora, a concentração sem esforço é a transposição do centro diretor do cérebro para o sistema rítmico – do domínio mental e da imaginação para o da moralidade e da vontade. O chapéu grande em forma de lemniscata que está na cabeça do mago e a sua atitude de perfeita despreocupação indicam essa transposição. A lemniscata (o oito horizontal: Leminiscata ) é o símbolo não só do infinito, mas também do ritmo, da respiração e da circulação – ela é o símbolo do ritmo eterno ou da eternidade do ritmo.
O mago representa, pois, o estado de concentração sem esforço, isto é, o estado de consciência no qual o centro diretor da vontade "desceu" (na verdade, "elevou-se") do cérebro para o sistema rítmico
e no qual as "oscilações da substância mental", reduzidas ao silêncio e ao repouso, não entravam mais a concentração.
Pag. 28:
A concentração sem esforço – isto é, na qual não há nada a suprimir, e o recolhimento se torna tão natural como a respiração e as pulsações do coração – é o estado de consciência (do intelecto, da imaginação, do sentimento e da vontade) em estado de tranquilidade perfeita, acompanhada da distensão completa dos nervos e dos músculos do corpo. É o silêncio profundo dos desejos, das preocupações, da imaginação, da memória e do pensamento discursivo. Dir-se-ia que o ser todo se tornou como a superfície de águas tranquilas refletindo a presença imensa do céu estrelado e de sua indizível harmonia. As águas são profundas, e como são profundas – e o silêncio aumenta, aumenta sempre, e que silêncio! Seu crescimento realiza-se por ondas regulares que passam, uma após outra, através de vosso ser: uma onda de silêncio, seguida de outra onda de silêncio mais profundo, depois outra onda de silêncio ainda mais profundo. Já bebestes do silêncio alguma vez? Se a resposta for afirmativa, sabeis o que é a concentração sem esforço.
No começo, o silêncio completo ou a "concentração sem esforço" duram instantes, depois minutos, depois quartos de hora. Com o tempo, o silêncio ou a concentração sem esforço se tornam o elemento funda­mental sempre presente na vida da alma. É como o ofício perpétuo na igreja de Sacré-Coeur de Montmartre, que se verifica enquanto em Paris trabalha-se, circula-se, diverte-se, dorme-se, morre-se... E assim que o "ofício perpétuo" do silêncio se instala na alma e prossegue até quando ela está em atividade, trabalhando ou conversando.
Uma vez estabelecida essa "zona de silêncio", podeis haurir dela tanto para o repouso como para o trabalho. Tereis então não só a concentração sem esforço como também a atividade sem esforço.
E é isso precisamente que quer dizer a segunda parte de nosso enunciado:
 
Transformai o trabalho em jogo.
 
A mudança do trabalho, que de corvéia se torna jogo, efetua-se em consequência da presença da "zona do silêncio perpétuo", do qual se pode haurir, por uma espécie de respiração íntima e secreta, a suavidade e o frescor que dão unção ao trabalho e o transformam em fogo.
Porque a "zona de silêncio" não significa só que a alma, no fundo, está em paz, mas também e mais ainda que ela está em contato com o céu ou com o mundo espiritual, que trabalha com ela. Aquele que encontra o silêncio na solidão da concentração :em esforço nunca está só. Ele nunca leva sozinho as cargas que deve carregar: as forças do céu, as forças do alto o ajudam.
Assim a verdade enunciada na terceira parte da fórmula:
 
fazei com que o jugo que aceitastes seja suave
e que o fardo que carregais seja leve
,
 
se torna experiência. Porque o silêncio é o sinal do contato real com o mundo espiritual, e esse contato, por sua vez, gera sempre o afluxo das forças. É esse o fundamento de toda mística, de toda gnose, de toda magia e de todo esoterismo prático em geral.
Pag. 29:
Todo esoterismo se funda na regra seguinte:
É necessário ser um em si mesmo (concentração sem esforço) e unido ao mundo espiritual (ter a zona de silêncio na alma), para que haja experiência espiritual reveladora ou realizadora.
Em outros termos, quem quiser praticar alguma fórmula do esoterismo autêntico – seja a mística, seja a gnose, seja a magia – deve ser mago, concentrado sem esforço, movendo-se com despreocupação como se estivesse brincando e agindo com calma perfeita.
Eis o ensinamento prático do Primeiro Arcano do Tarô. É o primeiro conselho, mandamento e advertência concernentes a toda prática espiritual; é o Alef do "alfabeto" das regras práticas do esoterismo. E como todos os números são apenas frações da unidade, assim também todas as outras regras práticas ensinadas pelos outros Arcanos do Tarô são apenas os aspectos e as modalidades dessa regra básica.
É esse o ensinamento prático do "Mago".
Qual é seu ensinamento teórico?
O dogma da unidade da essência de tudo o que existe precede todo ato de conhecimento, e todo ato de conhecimento pressupõe o dogma da unidade do mundo. O ideal – ou fim último – de toda filosofia e de toda ciência é a verdade. Mas a "verdade" não tem outro sentido que não seja a redução da pluralidade fenomenal à unidade essencial – dos fatos às leis, das leis aos princípios, dos princípios à essência ou ao ser. Toda procura da verdade – mística, gnóstica, filosófica e científica – postula a sua existência, isto é, a unidade funda­mental da multiplicidade fenomenal do mundo. Sem essa unidade, nada seria cognoscível. Como seria possível proceder do conhecido para o desconhecido – e esse é o método do progresso no conhecimento – se o desconhecido não tivesse nada a ver com o conhecido, se o desconhecido não tivesse nenhum parentesco com o conhecido e lhe fosse absoluta e essencialmente estranho? Quando dizemos que o mundo é cognoscível – isto é, que o conhecimento como tal existe – afirmamos, com isso mesmo, o dogma da unidade essencial do mundo. Afirmamos que o mundo não é um mosaico no qual está incrustada uma pluralidade de mundos essencialmente estranhos uns aos outros, mas que se trata de organismo cujas partes são governadas pelo mesmo princípio, revelando-o e deixando-se reduzir a cie. 0 parentesco de todas as coisas e de todos os seres é a condição "sine qua non" de sua possibilidade de serem conhecidos.
Pag. 30:
Ora, o parentesco de todas as coisas e de todos os seres reconhecido francamente gerou um método de conhecimento que lhe corresponde de modo estrito, conhecido geralmente pelo nome de Método da analogia: seu papel e alcance para a ciência dita "oculta" foram mostra­dos de maneira admirável por Papus em seu Traité élémentaire de Science Occulte. A analogia não é dogma ou postulado – a unidade essencial do mundo o é – mas sim o método primeiro e principal (o alef do alfabeto dos métodos), cujo uso permite fazer o conhecimento avançar. Ela é a conclusão primeira tirada do dogma da unidade universal: uma vez que no fundo da diversidade dos fenômenos encontra-se a sua unidade, de modo que eles são ao mesmo tempo diversos e um, segue­se que eles não são idênticos nem heterogêneos, mas análogos, enquanto manifestam seu parentesco essencial.
A enunciação tradicional do método da analogia é bem tradicional. E o primeiro versículo da Tábua de Esmeralda (Tabula Smaragdina) de Hermes Trismegisto:
"Quod superius est sicut quod inferius et quod inferius est sicut quod est superius ad perpetranda miracula Rei Unius":
"O que está no alto é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está no alto para realizar o milagre da Unidade".
É a forma clássica da analogia para tudo o que existe no espaço em cima e em baixo. A fórmula da analogia aplicada ao tempo seria:
"Quod fuit est sicut quod erit, et quod erit est sicut quod fuit, ad perpetranda miracula aeternitatis":
"O que foi é como o que será, e o que será é como o que foi, para realizar os milagres da eternidade".
Tábua de Esmeralda e Hermes Trismegisto
Tábua de Esmeralda (Tabula Smaragdina) e Hermes Trismegisto:
A fórmula da analogia, aplicada ao espaço, é a base do simbolismo tipológico, isto é, dos símbolos que exprimem as correspondências entre os protótipos no alto e suas manifestações em baixo; a fórmula da analogia aplicada ao tempo é a base do simbolismo mitológico, isto é, dos símbolos que exprimem as correspondências entre os arquétipos no passado e sua manifestação no presente. Assim o mago é símbolo tipológico; ele nos revela o protótipo do Homem-Espírito: Adão e Eva, Caim e Abel e, se quisermos, o "Cisma de Irschu" de Saint-Yves d'Alveydre, ao contrário, são mitos; eles revelam os arquétipos que se manifestam sem cessar na história e em cada biografia individual – são símbolos mitológicos pertencentes ao domínio do tempo.
Pag. 31:
Essas duas categorias de simbolismo, baseadas na analogia, constituem, pela sua relação mútua, uma cruz:
Cruz pela Tábua Esmeralda
Eis o que escreve sobre o mito (isto é, sobre o simbolismo do tempo ou simbolismo histórico, segundo a nossa definição) Hans Leisegang, autor de livro clássico sobre a Gnose: "O mito exprime na forma de narração de caso particular, uma ideia eterna, intuitivamente reconhecida por aquele que a revive na ação" (La Gnose, Payot, Paris, 1951, p. 42).
E eis o que diz dos símbolos tipológicos Marc Haven no capítulo sobre o simbolismo, em seu livro póstumo Le Tarot (1937): "As nossas sensações, símbolos de movimentos exteriores, não se parecem com eles (isto é, com os fenômenos) como as ondulações da areia, no deserto, não se parecem com o vento que forma os montículos e como o fluxo e refluxo das águas do mar não se parecem com os movimentos combi­nados do Sol e da Lua. Eles são os seus símbolos... A opinião de Kant, de Hamilton e de Spencer, que reduzem os movimentos de dentro a simples símbolos de realidade oculta, é mais racional e mais verdadeira (do que o realismo ingênuo – nota do autor). A própria ciência deve resignar-se a ser apenas simbolismo consciente de si mesma... Mas a simbólica tem alcance muito diferente. Ciência das ciências, como a chamavam os antigos (Decourcelle, Traité des symboles, Paris, 1806), e língua universal e divina, ela proclama e prova a hierarquia das formas desde o mundo arquetípico até o mundo material e as relações que os unem; numa palavra, ela é a prova tangível da solidariedade dos seres" (pp. 19, 20, 24).
Eis pois duas definições dos símbolos do tempo ou dos mitos e dos do espaço ou da correspondência dos mundos "desde o mundo arquetípico até o mundo material" – formuladas, uma, por sábio alemão em Lípsia, em 1924, e, a outra, por hermetista francês em Lião, em 1906 – que exprimem exatamente as idéias dos dois gêneros da simbólica – o mitológico e o tipológico – que acabamos de apresentar.
A "Tábua de Esmeralda" visa somente ao simbolismo tipológico ou do espaço – a analogia entre o que está "em cima" e o que está "em baixo". Por isso, é necessário acrescentar-lhe, por extensão, a fórmula correspondente, que visa ao simbolismo mitológico ou simbolismo do tempo, que encontramos, por exemplo, no livro do Gênesis.
A distinção entre essas duas formas da simbólica é inteiramente desprovida de alcance prático; é à sua confusão que se devem atribuir muitos erros de interpretação das fontes antigas, inclusive da Bíblia. Assim, por exemplo, alguns autores consideram a narração de Caim e Abel como tipológica. Eles querem ver nela os símbolos das "forças centrífugas e centrípetas" etc. Mas a história de Caíra e Abel é um mito, isto é, exprime, na forma de narração de um caso particular, uma ideia "eterna", referindo-se, consequentemente, ao tempo e à história, e não ao espaço e à sua estrutura. Ela nos mostra que irmãos podem tornar-se inimigos mortais pelo fato de adorarem, do mesmo modo, o mesmo Deus.
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Essa história revela a fonte das guerras de religião; a sua causa não é a diferença de dogma, de culto ou de rito, e sim unicamente a pretensão à igualdade ou, se preferirmos, a negação da hierarquia. Temos aqui também a primeira revolução do mundo – o arquétipo (o Urphänomen de Goethe) de todas as revoluções passadas e futuras da humanidade, uma vez que a causa de todas as guerras e revoluções – numa palavra, de toda violência – é sempre a mesma: a negação da hierarquia. Essa causa já se encontra em germe num nível tão elevado como é o ato comum de adoração do mesmo Deus por dois irmãos, e nisso está a revelação perturbadora da história de Caim e Abel. E como os homicídios, . as guerras e as revoluções continuam, a história de Caim e Abel permanece sempre válida e atual. Ela é um mito e um mito de primeira ordem.
O mesmo podemos dizer das narrativas da queda de Adão e Eva, do dilúvio e da arca de Noé, da torre de Babel etc. Elas são mitos, isto é, são, em primeiro lugar, símbolos históricos referentes ao tempo, e não símbolos que exprimem a unidade dos mundos no espaço físico, metafísico e moral. A queda de Adão e Eva não revela uma queda correspondente no mundo divino, no seio da Santíssima Trindade, e também não exprime diretamente a estrutura metafísica do mundo arque­típico. Ela é acontecimento particular da história da humanidade terrestre, cujo alcance só cessará com o fim da história humana; numa palavra, ela é verdadeiro mito.
Seria errôneo, por outro lado, interpretar, por exemplo, a visão de Ezequiel, o Merkabahi, como mito. A visão do carro celeste é revelação simbólica do mundo arquetípico. Ela pertence à simbólica tipológica – o que, aliás, o autor do Zohar compreendeu muito bem e, por isso, tomou a visão de Ezequiel como símbolo central do conhecimento cósmico – segundo a regra da analogia, em conformidade com a qual o que está em cima é como o que está em baixo.
Porque o Zohar conhece bem essa regra. Ele não só a usa implicitamente como também lhe dá expressão explícita. É assim que lemos no Zohar (Waera, 25a): "O que está em cima é como o que está em baixo: como os 'dias' de cima estão cheios da bênção do Homem (celeste), do mesmo modo os dias daqui de baixo estão cheios da bênção por inter­médio do Homem (do justo)".
Também a India tem a sua versão da máxima hermética. Assim a Vishvasâra Tantra anuncia a fórmula: “O que está aqui está lá. O que não está aqui não está em parte alguma” (Arthur Avalon. La Puissance du Serpent, p. 56).
O uso da analogia não se limita, contudo, às "ciências malditas" – a magia, a astrologia e a alquimia – e à mística especulativa, sendo, a bem dizer, universal, porque nem a filosofia, nem a teologia e nem a ciência podem prescindir dela.
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Eis o papel que a analogia desempenha na lógica, que é a base da filosofia e das ciências:
1) A classificação dos objetos segundo sua semelhança é o primeiro passo no caminho da pesquisa pelo método indutivo. Ela pressupõe a analogia dos objetos a classificar.
2) A analogia (o argumento por analogia) pode constituir a base das hipóteses. Assim a famosa Hipótese Nebular de Laplace deve-se à analogia que ele observou na direção do movimento circular dos planetas em torno do Sol, do movimento dos satélites em torno dos planetas e da rotação dos planetas em torno de seus eixos. Da analogia observa­da nesses movimentos ele concluiu pela sua origem comum.
3) Diz J. Maynard Keynes em seu A Treatise on Probability (Tratado sobre a probabilidade): "O método científico tem como objetivo descobrir os meios de elevar o alcance da analogia conhecida até que ela possa, na medida do possível, dispensar os métodos da indução pura" (p. 24). Ora, a "indução pura" se funda na simples enumeração, sendo essencialmente uma conclusão tirada dos dados estatísticos da experiência. Assim poderíamos dizer: como João é homem e morreu, Pedro é homem e morreu, Miguel é homem e morreu etc. A força desse argumento depende do número ou da quantidade dos fatos conhecidos pela experiência; a analogia, ao contrário, acrescenta a ele o elemento qualitativo de alcance intrínseco das quantidades. Eis um exemplo de argumento por analogia: André é formado de matéria, energia e consciência. Como a matéria não desaparece com sua morte, mas somente muda de forma, e como a energia não desaparece, mas somente se modifica, também a sua consciência não pode simplesmente desaparecer, mas deve apenas mudar a sua forma e o seu modo (ou plano) de atividade. Logo, André é imortal.
Este argumento funda-se na fórmula de Hermes Trismegisto: o que está em baixo (matéria, energia) é como o que está em cima (consciência). Ora, se existe a lei da conservação da matéria e da energia (se bem que a matéria se transforme em energia e vice-versa), deve existir também, necessariamente, a lei da conservação da consciência ou da imortalidade.
Hermes Trismegisto na Castedral de Siena
Hermes Trismegistus, atribuído a Stefano di Giovanni. Duomo de Siena, 1488.
Na legenda sob a figura central lê-se "Hermes Mercurius Trismegistus, contemporâneo de Moisés"
Fonte: www.pt.wikipedia.org/wiki/Hermes_Trismegisto
Segundo Keynes, o ideal da ciência é encontrar meios para ampliar o alcance da analogia conhecida até que ela possa dispensar o método hipotético da indução pura, isto é, até que ela possa transformar o método científico em analogia pura, baseada na experiência pura, sem elementos hipotéticos imanentes na indução pura.
Ora, é graças ao método da analogia que a ciência faz descobertas (passando do conhecido para o desconhecido), enuncia hipóteses fecundas e busca um fim metódico diretor. A analogia é seu começo e seu fim, seu alfa e seu ômega.
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No que concerne à filosofia especulativa ou metafísica, o mesmo papel está reservado à analogia. Todas as conclusões de alcance metafísico estão baseadas na analogia do homem, da natureza e do mondo inteligível ou metafísico. Assim as duas autoridades principais da filoso­fia mais metódica e mais disciplinada – a filosofia escolástica medieval – santo Tomás de Aquino e são Boaventura (dos quais um representa, na filosofia cristã, o aristotelismo, e o outro, o platonismo) não tó se servem da analogia como também lhe atribuem papel teórico muito importante em suas doutrinas. Santo Tomás propõe a doutrina da analogia entis, ou "analogia do ser", que é a chave principal de sua filosofia. São Boaventura,em sua doutrina da Signatura rerum, interpreta o mundo visível como símbolo do mundo invisível. Para ele, o mundo visível é outra Escritura Sagrada, outra revelação ao lado da que está contida na Escritura Sagrada propriamente dita.
 
"Et sic patet quod totus mundus est sicut unum speculum plenum luminibus praesentantibus divinam sapientiam, et sicut carbo effundens lucem" (In Hexaem., II, 27) – "vê-se assim que o mundo inteiro é como um único espelho cheio de luzes que apresentam a sabedoria divina, ou como uma brasa que emite luz".
 
Ora, santo Tomás e são Boaventura foram proclamados (por Sixto V, em 1588. e por Leão XIII, em 1879) duae olivae et duo candelabra in domo Dei lucentia – "duas oliveiras e dois candelabros resplandecentes na casa de Deus".
Vês então, caro Amigo Desconhecido, que podemos, tu e eu, declarar abertamente nossa fé na analogia e proclamar em voz alta a fórmula da "Tábua de Esmeralda", consagrada pela tradição, sem parecermos infiéis à filosofia, à ciência e às doutrinas oficiais da Igreja. Podemos fazê-lo em sã consciência como filósofos, como sábios e como católicos.
Mas a aprovação concedida à analogia não se detém aí: o próprio Mestre a sancionou pelo uso que fez dela. Mostram-no tanto as parábolas como o argumento a fortiori que ele usou em seu testemunho. As parábolas, que são símbolos ad hoc, seriam desprovidas de sentido e utilidade se não constituíssem enunciados de verdades analógicas expressas na linguagem da analogia e fazendo apelo ao sentido da analogia.
Quanto ao argumento a fortiori, toda a sua força reside na analogia, que é réu fundamento. Eis um exemplo de argumento a fortiori empregado pelo Mestre:
 
"Quem dentre vós dará uma pedra a seu filho, se este lhe pedir pão? Ou lhe dará uma cobra, se este lhe pedir peixe? Ora, se vós que sais maus sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, por razão mais forte o vosso Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe pedem" (Mt 7,9-11).
 
Temos aqui a analogia do parentesco terrestre humano e do parentesco celeste divino, na qual se funda a força do argumento a fortiori ou "por razão mais forte", que, da manifestação imperfeita, conclui por seu protótipo ideal. A analogia do pai e do Pai é a sua essência.
A esta altura, pode surgir no leitor consciencioso um sentimento de mal-estar: "Eis muitos argumentos e autoridades citados em apoio do método de analogia apresentado, mas, e os argumentos contra esse método, bem como sua fraqueza e seus perigos?"
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Devemos confessar sem rodeios e com toda a franqueza que o mé­todo da analogia encerra aspectos negativos e perigos, erros e ilusões graves. Isso porque ele se tunda inteiramente na experiência, e toda experiência superficial, incompleta ou falsa naturalmente dá lugar a conclusões por analogia igualmente superficiais, incompletas e falsas. Assim, usando telescópio de alcance insuficiente, os astrônomos viram em Marte linhas retas e contínuas e concluíram, por analogia, que elas eram "canais" artificiais e que Marte era habitado por seres civilizados. Com o aperfeiçoamento dos telescópios, puderam observar que os "canais" não são contínuos, nem retilíneos. Em tais casos, o argumento por analogia perde seu valor por causa do erro de experiência que lhe serve de apoio.
Quanto às ciências ocultas, Gérard van Rijnberk publicou (na p. 203 de seu livro Le Tarot) um quadro das "correspondências astrológicas do Tarô segundo diferentes autores". Nele, na lâmina VII, "o Carro", por exemplo, corresponde ao signo de Gêmeos (segundo Etteila), de Sagitário (segundo Fomalhaut), de Gêmeos (segundo Shoral), de Sagitário (segundo autor anônimo), ao planeta Marte (segundo Basílides), ao planeta Vênus (segundo Volguine), ao Sol (segundo Ely Star), ao signo de Libra (segundo Snijders), ao planeta Vênus (segundo Muchery), ao signo de Câncer (segundo Crowley) e ao signo de Gêmeos (segundo Kurtzahn).
Aqui salta aos olhos a relatividade das correspondências obtidas pelo método analógico.
Ao contrário, a concordância das correspondências entre os metais e os planetas, obtida pelo mesmo método, manteve-se nos autores antigos, medievais e modernos. Os astrólogos gregos do século IV a.C., continuando a tradição babilônica, na qual o ouro correspondia ao Sol e ao deus Enlil, e a prata à Lua e ao deus Anu, aceitavam as correspondências seguintes: Ouro-Sol, Prata-Lua, Chumbo-Saturno, Estanho-Júpiter, Ferro-Marte, Cobre-Vênus, Mercúrio-Mercúrio (E. J. Holmyard, Alchemy, Pelican, Londres, 1957, p. 18). As mesmas correspondências que eram aceitas pelos astrólogos e alquimistas da Idade Média o são ainda hoje por todos os autores de ciências ocultas e de hermetismo (inclusive por Rudolf Steiner e pelos outros autores antropósofos), logo também pelo Traité Élémentaire de Science occulte de Papus (Dangles, Paris, reprodução integral na 7ª ed., p. 145).
Quarenta e quatro anos de estudos nesse domínio não me fizeram modificar em nada o quadro das correspondências acima, muito ao contrário.
O método da analogia não é infalível, mas pode levar a descobertas de verdades essenciais. Sua eficácia depende da extensão e da exatidão da experiência na qual ele se apóia.
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Voltemos agora ao arcano "O Mago".
A concentração sem esforço tem sua expressão tanto no conjunto da lâmina como em seus pormenores; ela constitui seu arcano prático. Nela está expresso também o método da analogia, da qual ela é ainda o arcano teórico. Porque, vista no plano intelectual, a prática do método da analogia corresponde em tudo à prática da concentração sem esforço. E essa prática se manifesta não como "trabalho", e sim como "jogo".
Com efeito, no plano intelectual, a prática da analogia não exige esforço algum; ou percebemos e "vemos" as correspondências analógicas ou simplesmente não as percebemos, nem "vemos".
Como o mago e o pelotiqueiro devem exercitar-se e trabalhar durante muito tempo antes de atingirem a habilidade de concentração sem esforço, também aquele que usa o método da analogia no plano intelectual deve adquirir longa experiência e acumular as lições que ela comporta antes de atingir a faculdade de percepção imediata das correspondências analógicas – antes de se tornar "mago" ou "pelotiqueiro" que se serve da analogia dos seres e das coisas sem esforço, como que brincando. Essa faculdade constitui parte essencial da realização da tarefa que o Mestre prescreveu aos seus discípulos. "Em verdade vos digo: aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele" (Mc 10,15).
A criança não "trabalha", ela brinca. Mas como ela é séria, isto é, concentrada quando brinca! A sua atenção ainda é inteira e indivisa, ao passo que naquele que se aproxima do Reino de Deus, ela já se torna inteira e indivisa. Nisso está o arcano da genialidade intelectual: na visão da unidade dos seres e das coisas pela percepção imediata de suas correspondências, pela consciência concentrada sem esforço.
O Mestre não quer que nos tornemos pueris; o que ele quer é que atinjamos a genialidade da inteligência e do coração, que é análoga – não idêntica – à atitude da criança, que só carrega fardos leves e que torna suaves todos os jugos.
O mago representa o homem que atingiu a harmonia e o equilíbrio entre a espontaneidade do Inconsciente (no sentido de C. G. Jung) e a ação voluntária do Consciente (no sentido do "ego" consciente).
Seu estado de consciência é a síntese do Consciente e do Inconsciente, da espontaneidade criadora e da atividade voluntária executiva. É o estado de consciência que a escola psicológica de C. G. Jung chama de individuação" ou de "síntese do Consciente e do Inconsciente" (os dois elementos da personalidade) ou de síntese do si mesmo (C. G. Jung e Ch. Kerenyi, Introduction à l'essence de la mythologie, p. 107).
 
N. do T. : Jung distingue "etre" o "eu" (moi) e o "si mesmo" (soi). Como daqui para frente a expressão "si mesmo" reaparece muitas vezes, transcrevemos um pequeno trecho, no qual o próprio Jung explica seu significado: "Se bem que apenas o Ego seja o centro de minha esfera consciente, não significa esse fato que o Ego seja idêntico à totalidade de minha psique, não passando de um complexo entre vários outros complexos. Distingo, portanto, entre o Ego e Si mesmo, em que o Ego é somente o sujeito de minha consciência, e o Si mesmo é o sujeito de toda minha psique, inclusive do inconsciente. Nesta acepção o Si mesmo seria uma grandeza (ideal) em que o Ego estaria abrangido". (C. G. Jung, Tipos psicológicos, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967, p. 448)
 
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Essa síntese torna possível a concentração sem esforço e a visão intelectual sem esforço, que são os aspectos práticos e teóricos da fecundidade nos domínios tanto prático como intelectual.
Parece que Friedrich Schiller teve consciência desse arcano quando expôs, no Spieltrieb ("impulso para o jogo"), sua doutrina da síntese entre a consciência intelectual, que impõe fardos pesados – deveres e regras – ... e a natureza instintiva do homem. O "verdadeiro" e o "desejado" devem, segundo ele, encontrar sua síntese no "belo", porque é no belo que o Spieltrieb torna leve o fardo do "verdadeiro" ou do "justo" e, ao mesmo tempo, eleva as trevas das forças instintivas ao nível da luz da consciência (Schiller, Lettres sur l'éducation esthétique). Em outras palavras, aquele que vê a beleza daquilo que reconheceu como verdadeiro não deixará de amá-lo – e, pelo amor, o elemento de constrição desaparecerá no dever prescrito pelo verdadeiro: o dever se tornará tendência. Assim o "trabalho" se transforma em "jogo", e a concentração sem esforço tornar-se-á possível.
Mas o primeiro arcano, o arcano da fecundidade prática e teórica, embora proclame a eficácia do jogo sério (o Tarô todo é jogo sério), contém, ao mesmo tempo, advertência grave: há Jogo e jogo, há Mago e mago; por isso, quem confunde a falta de concentração sem esforço e as correntes de simples associação mental com a visão sem esforço das correspondências da analogia necessariamente se tornará charlatão.
O arcano do Mago é duplo, isto é, tem dois aspectos: coloca-nos no caminho que conduz à genialidade e nos põe em guarda contra o perigo do caminho que conduz ao charlatanismo.
Infelizmente muitas vezes os professores de ocultismo seguem os dois caminhos ao mesmo tempo, e o que ensinam contém elementos de gênio misturados com elementos de charlatanismo. Que o primeiro arcano do Tarô sempre nos esteja presente como uma espécie de "guarda do limiar", que ele nos convide a passarmos o limiar do trabalho e do esforço para entrarmos na ação sem esforço e no conhecimento sem esforço, mas que ele nos lembre também que quanto mais avançarmos além do limiar mais indispensáveis serão o trabalho, o esforço e a experiência do lado de cá desse limiar para atingirmos a verdade real. Que o Mago nos diga e nos repita cada dia:
 
"Perceber e saber, tentar e poder são coisas diferentes. Existem miragens em cima e miragens em baixo: sabes somente o que é verificado pela concordância de todas as formas da experiência em sua totalidade – experiência dos sentidos, experiência moral, experiência psíquica, experiência coletiva de outros pesquisadores da verdade e experiência daqueles cujo saber mereceu o título de sabedoria e cujo querer foi coroado com o título de santidade. A Academia e a Igreja estipulam condições metódicas e morais para aquele que deseja avançar. Cumpre-as rigorosamente, antes e de­pois de cada incursão pela região que está além do domínio do trabalho e do esforço. Se o fizeres, serás sábio e mago. Se não o fizeres – serás charlatão!"...
 
Valentin Tomberg (1900-1973), russo-estoniano,
foi um erudito, professor, poliglota, místico e hermetista cristão.
Outros trabalhos seus no Clube do Tarô: Autores
Edição: CKR – 1º/09/2016
  Baralho Cigano
  Tarô Egípcio
  Quatro pilares
  Orientação
  O Momento
  I Ching
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