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Os meandros dos relacionamentos |
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“O Enamorado: vítima do erro dourado de Cupido” |
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O Lunático, o Enamorado e o Poeta
Têm todos eles, a imaginação compacta. |
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Shakespeare |
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Mais um domingo chegava ao fim. Era dezembro dos anos dourados. No quarto de Ivan o “smoking” preto com colete prateado, jazia em cima da cama bem esticadinho, pronto para o uso. Aguardava apenas a chegada do dono. A noite chegou e a madrugada se anunciou, mas Ivan não chegou... Ele estava no hospital entre a vida e a morte! |
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Foi vencido pela escolha da morte ao raiar do dia. Isis, a noiva, no dia anterior havia feito as ultimas compras do enxoval. O casamento seria no próximo domingo. Ao saber do acidente de carro, ela entrou em choque. Isis havia sido a última escolha de Ivan entre várias namoradas. |
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Eram esses os pensamentos de Mayda relembrando a data de 18 de dezembro de um longínquo ano dourado, o fatídico dia da morte de Ivan, quando ele tinha 28 anos. Deitada na rede, lendo um livro, voltou ao passado e reviveu mais uma vez o sentimento de algo que se fora para sempre. Toda vez Mayda se perguntava o porquê de não ter sido a escolha do Ivan. Quando já refeita das lembranças, agradecia a Deus por não ter sido ela a escolhida. |
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Lembrava de Isis indo ao cemitério durante um ano inteiro, todos os dias, com uma rosa vermelha. Trazia a murcha para casa e a guardava em um cofre de madeira desenhada com cenas no mínimo, insólitas. Precisou de terapia. Pobre Isis... |
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Ilustração do arcano Enamorados publicada pela USGames, 1966. |
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— Porque choras Mayda? – perguntou o marido. |
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— Por nada... É o livro: estou um pouco comovida. |
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— Hoje é 18 de dezembro. Você lembra alguma coisa? – pergunta o marido. |
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— Dia 18 de dezembro? – responde Mayda, fingindo surpresa. – Ah! A morte de Ivan. |
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— Pois é, o irmão de tua amiga de infância... |
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— Justo, ele mesmo... Sofreu um acidente de carro no dia da formatura de Engenharia. |
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— C’est la vie! — e Carlos, o marido, sai de mansinho. |
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O domingo estava indo embora. Nuvens carregadas de chuva apareciam no céu escurecido. Mayda divagava deitada na rede e, fechando os olhos, se reportou ao passado, mais uma vez... |
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Ivan era o protótipo do Enamorado: falava em voz baixa com Mayda e era a representação do arquétipo do Amor. Não se pode negar que a energia do Enamorado em excesso leva ao dom-juanismo |
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Mayda conhecia as cartas do Tarô e as interpretava numa perspectiva junguiana. Muitas vezes tentara entender a ação das energias dos Arcanos Maiores, mas só compreendeu de verdade quando passou a usar a psicologia das profundezas. |
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— Ivan era bonitão como um Marlon Brando, carismático e sedutor – continuou em seu solilóquio – e a carta do Enamorado é a representação do arquétipo do Amor. |
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Lembrava do que sua amiga e confidente Anita lhe dissera, quando lhe contara ter sido a escolhida das férias de julho. |
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— Aposto que não vai durar nem dois meses. |
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—Vira esta boca para lá, mulher... |
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— Ora! Veremos! Ele é um Don Juan contumaz. |
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Dito e feito: durou exatamente dois meses... |
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Os Namorados na arte de Anna Lobello |
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É ato sabido que o arquétipo do Enamorado, ou melhor, do Amor é visto como uma realidade externa quando gera o dom-juanismo, porque disfarçadamente é a falta de maturidade que faz com as escolhas sejam aleatórias. No dizer de Puck o livre arbítrio é uma ilusão. As escolhas terão suas consequências para o resto da vida e seguirá as pessoas por onde for. As ações podem ser inconscientes, mas os resultados serão sempre conscientes e a responsabilidade estará lá. Só que não será sentida pelo praticante. É muito triste... |
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Mayda ainda recordava das conversas de Anita. |
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— Você lembra de todas as namoradas dele? |
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— Todas, não. Só de algumas delas. Djanira, a solteirona, nunca casou e desenvolveu o vício de fumar. Rita não casou e coleciona casos pela vida afora. Carmem, a ruiva, ainda sonha acordada com sua coleção de fotografias. Não consegue encontrar o par certo. Clara nunca casou e desenvolveu o vício da bebida... |
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— E você Mayda? — perguntava com ironia Anita. |
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— Eu? Você sabe: ele foi meu primeiro amor. Como se pode esquecer o primeiro amor? Puxa! Que diabos tinha esse cara? ”Mamãe” passou açúcar nele?! |
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Mayda voltando à realidade de sua vida, embalada pelo balanço da rede, se via como se estivesse numa catarse, lembrando-se dos vários significados da carta dos Enamorados. Não apenas o lado amoroso das escolhas, mas também as várias escolhas que a vida oferece ao longo da jornada. Sabia muito disso. Tinha perdido a conta de quantas escolhas fizera em toda a vida passada e, ainda, fazia no dia a dia! |
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Os Namorados pela artista Trung Nguyen |
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O que podemos falar dos Enamorados? |
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Sua essência são os relacionamentos. Suas características são: indecisão, confusão, insegurança, instabilidade, incerteza e por ai vai... Uma coisa, no entanto, se sobressai: é a vontade ser feliz apesar de tudo. |
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O Enamorado quer tudo ao mesmo tempo e fará o que puder para ser feliz. Os acertos dependerão do grau de maturidade desenvolvida através da jornada de vida. Em seu simbolismo maior é o próprio Adônis representando o conhecimento profundo das emoções amorosas, mesmo sabendo que é preciso renunciar para consegui-las. Numa visão cabalística o aconselhamento se voltará para o entendimento, deixando as dúvidas de lado e valorizando apenas o desejo de ser feliz. |
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Durante a nossa jornada iremos nos confrontar várias vezes com estas dúvidas. Ser ou não ser: eis a questão maior. Eu duvido, então, estou vivo! |
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Todos nós temos o nosso livre arbítrio. Mas é aceitável a busca da harmonização das escolhas e o perdão de si mesmo quando os erros acontecerem. O fluxo de energia 6 é responsável por todas as nossas escolhas de vida. A carta dos Enamorados nos diz que é um arquétipo de fragmentação, regido pelo signo de gêmeos (a busca da alma gêmea). Ainda é o arcano que carrega os desejos do 1, 2, 3, 4 e 5: seus objetivos e diretrizes são direcionados para a realidade, em busca do melhor resultado para si mesmo. |
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Mayda suspira e dá por encerrado a sua catarse, à espera do ano seguinte, no mesmo dia de um ano dourado! Até lá, haja escolhas a fazer.... |
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Como um fechamento de seus pensamentos Mayda conclui: |
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— Diante de tantas escolhas Ivan terá sido feliz? Será que amou alguém de verdade? |
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No final da história de sua vida a escolha não foi dele. Dizem que o sentido da vida é a Morte e que o destino de cada um está escrito. Então, a morte fizera a escolha por ele. |
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Nota: A citação inicial na abertura desse texto e as considerações simbólicas dos arcanos têm sua fonte na obra de Sallie Nichols, Jung e o Tarô – uma jornada arquetípica – Ed. Cultrix - Cap. 9 - pag. 137. |
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Glória Marinho é historiadora e antropóloga formada pela UFPE.
Atende pessoalmente, seguindo a linha junguiana: glorieta@bol.com.br
Outros trabalhos seus no Clube do Tarô: Autores |
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