Home page

18 de abril de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


ARCANOS MAIORES: O Louco
 
O Arcano 0 ou 22 - História e Símbolos
Texto de Cid Marcus
Professor de Mitologia e Astrólogo
    
    O arcano 0 ou 22 é conhecido sob diversos nomes, Louco, Bobo, Bufão, Andarilho, Indefinido. É conhecido também como o arcano que não tem número. Pensemos um pouco no zero.
    
O zero
 
    Zero é a total ausência de quantidade, número que corresponde a um conjunto vazio. Aquilo que de mais recuado sabemos sobre o zero está na Índia, uma criação dos místicos indianos, que colocavam em torno de um z um círculo, chamando o símbolo de cifra.
    Os árabes usaram o símbolo, chamando-o de "sifr". Os gregos deram ao símbolo o nome Zéphyro, um deus-vento de sua mitologia, que sopra na direção oeste-leste. Zéfiro passou a designar simplesmente o vento, o sopro, isto é, nada. A letra z é a 22ª do alfabeto latino, sendo a 6ª do grego. A origem do zero também pode ser pesquisada em outras tradições (maia).
    Qualquer que seja a sua origem, porém, o que importa é que o zero é sempre um símbolo de todas as potencialidades, o Brahman do Hinduísmo, no qual tudo que foi, é e será está contido.
 
Zéfiro e Flora
Tela de William Bouguereau
www.1st-art-gallery.com
 
    Equivale também o zero ao ovo cósmico, base de todas as cosmogonias que, como já sabemos, são análogas ao nosso processo de individuação. Simbolicamente, o zero é o princípio feminino, é a matriz, o útero. É o zero aquilo que antecede a manifestação, ou seja, o um.
    Na Índia, o zero é o não-ser dotado de energia criadora. Já os sábios muçulmanos sempre demonstraram um particular interesse por este não-ser, por este não-existente, por este nada criador, por eles chamado muitas vezes de Deus escondido, o "deus absconditus" dos místicos latinos, o deus insondável e infinito, o Todo dos hermetistas, aquele que não se deixa apreender pela razão humana, a não ser pela "coincidentia oppositorum."
    O zero simboliza também o objeto que não tendo valor por si mesmo, mas somente pela sua posição, confere valor aos outros, multiplicando por dez os números colocados à sua esquerda. Por isso, o zero simboliza também a pessoa que só tem valor por delegação. Um "zero à esquerda" é uma pessoa destituída de valor. É neste sentido que o arcano 0 do Tarô se coloca. Não sendo numerado, pode valorizar ou anular os outros, segundo a sua posição.
 
O Deus do Milho
www2.hawaii.edu
      Encontramos a ilustração do que acabamos de dizer na mitologia do Popol-Vuh (poema simbólico e esotérico escrito em língua quiche pouco antes da conquista espanhola, descrevendo a origem do mundo e as tradições religiosas do povo maia). Nessa mitologia, o zero (segundo muitos, conceito descoberto pelos maias, já utilizado por eles há mais de mil anos antes de ter aparecido na Europa) corresponde ao momento do sacrifício do deus-herói do milho por imersão num rio e da sua ressurreição a fim de subir aos céus para se transformar no Sol.
    No processo de germinação do milho, este momento corresponde ao da desintegração da semente na terra, antes que a vida volte a se manifestar, fazendo aparecer a pequenina haste da planta nascente. Esta idéia está no ocultismo ocidental, na Astrologia, sendo o instante da reversão da polarização, que separa o fim do semi-círculo involutivo e marca o começo do evolutivo no ciclo zodiacal.
    O zero maia explica assim o grande mito da regeneração cíclica, o eterno jogo entre o 0 e o 22 no Tarô. Esta idéia está no ocultismo ocidental, na Astrologia, sendo o instante da reversão da polarização, que separa o fim do semi-círculo involutivo e marca o começo do evolutivo no ciclo zodiacal. O zero maia explica assim o grande mito da regeneração cíclica, o eterno jogo entre o 0 e o 22 no Tarô.
    
0-22 e a Árvore da Vida
 
    Se o 0 indica o início das possibilidades, o número 22 indica o fim. As letras do alfabeto hebraico, como sabemos, são 22, que é também o número das correntes que ligam os dez sephirot entre si, elementos essenciais na tradição cabalística.
    Os sephirot são atributos do divino e representam sua manifestação descendente, desde Kether (Coroa) até Malchut (Reino).
    Existe uma relação natural entre o zero e a numeração, a multiplicidade. É a partir do zero que se desenvolvem os princípios matemáticos de positivo e negativo.
    Zero é o ponto de chegada da contagem reversiva, indicando uma globalidade vazia e indiferenciada.
    É por essa razão que o 1, que surge do nada, é seu filho "consubstancial". Por isso, o 1 encerra todas as potencialidades do ser, que no zero existiam em estado informal. Sephirot em hebraico é o plural de sephira, sendo saphar o verbo enumerar, palavras que lembram em grego sphaira, bola, esfera, círculo. Todas estas aproximações sugerem uma forte e determinante "presença" da Cabala no Tarô.
    A Cabala é um sistema filosófico-religioso judaico de origem medieval (sécs. XII-XIII), que integra elementos que remontam ao início da era cristã, desenvolvido principalmente da Espanha.
 
Os 10 sephirot e os 22 caminhos (ou correntes) da Árvore da Vida
http://matematica.uni-bocconi.it/ ballabio/matematica.htm
 
    De natureza mística, esotérica e taumatúrgica, a Cabala se caracteriza principalmente pelas indagações sobre a doutrina da criação do universo pelo princípio da emanação divina.
    
O Louco
 
    O Louco, um dos nomes do arcano, se considerado a partir do 0, tomará um sentido evolutivo-involutivo, isto é, da matriz original dos números até o estado a partir dos quais eles deixam de existir. Ele representa tanto o vagabundo que caminha como o louco (a mente que não sossega jamais, representada na Astrologia pelo planeta Mercúrio) do rei (o eu superior, o Sol). Poeta, inspirado, alucinado, idiota, o louco em todas as antigas tradições não tinha só a função de divertir, ele gozava também da chamada "liberdade dos loucos", denominada também como "loucura divina", a prerrogativa de poder dizer a verdade sem temor de punição, sob a condição de que ela fosse proferida como brincadeira, como sátira ou como deboche.
    Os loucos na Antigüidade grega eram sempre seres tocados pelo divino, mesmo no caso da loucura comum, causada por doenças, por males físicos, diferente daquelas formas de loucura enviadas pelos deuses, também chamadas de mânticas (profética, mistérica, poética e erótica). O louco sempre esteve fora das normas, das regras sociais. Uma das prerrogativas do louco é a de poder dizer o que lhe passe pela cabeça, dizer a verdade sem temor nenhum de ser punido. Pela roupa que veste e por outros símbolos que carrega, o louco pode ser visto como uma representação da sabedoria espontânea, ingênua, dos chamados loucos de Deus, de inúmeras tradições místicas (Índia, Grécia, Islã etc.).
O Louco no Tarô Clássico
      Um detalhe importante dessa figura é o cão, tradicionalmente associado a caçadores, a exploradores. Nessa condição, os cães sempre caminham à frente do caçador e, como tal, são muito importantes na chamada arte cinegética, uma das cinco artes que o centauro Kiron ensinava aos seus discípulos, futuros heróis. Na figura de que tratamos, o cão não vai à frente, pelo contrário parece andar à volta do personagem, atrás.
    Nos mitos, os cães, simbolicamente, são indicadores de trilhas, de caminhos, andam à frente do caçador (o eu que virá). É neste sentido que deve ser entendida uma antiqüíssima tradição dos povos indo-europeus, a do sacrifício desse animal aos mortos, a fim de que lhes fosse servir de guia no outro mundo. É neste sentido também que devemos entender a posição desse animal em vários mitos e na astrologia:
por exemplo, a estrela Sirius, que anuncia a plenitude do verão, estrela da constelação do Cão Maior, que faz a ligação entre as constelações zodiacais de Câncer e Leão.
    Ora, o cão neste arcano não nos permite pressupor que sua função seja a de guiar, de orientar, de indicar caminhos. Brincalhão e lépido, saltitante, parece simbolizar muito mais a dispersão, a desconcentração, ou seja, a grande dificuldade que o ser humano tem em fixar a sua mente, a atividade do seu pensamento, a dificuldade em organizar, enfim, o conjunto dos seus processos cognitivos e as atividades psicológicas que lhes são correlatas. Uma fórmula alquímica talvez traduza muito melhor o que acabamos de colocar, solve et coagula, ou seja, a alternância entre a conquista e a perda da forma na caminhada existencial.
    0 0-22 descreve, nessa leitura, a ronda infinita da criação (o 22 retornando ao 0 e deste novamente àquele). O 0 é o infinito como o En-Sof da Cabala é o vazio absoluto do infinito divino. A Cabala antecede a série dos números (sephirot) por uma fonte não manifesta, o En-Sof, que designa o incognoscível, o incriado. O zero e o infinito, que o Tarô representa pelo 22, são os dois modos diversos da mesma realidade inapreensível.
    No Tarô de Marselha, o arcano de que tratamos é chamado de Le Mat, que alguns traduzem por O Louco. A palavra francesa mat vem do baixo latim, começando a se fixar no século XI. O verbo latino que lhe deu origem é o verbo madere, estar úmido. Mat é contração de maditus, particípio passado de madere, que traduzo por umedecido, no sentido de "estar tocado", "um pouco embriagado". Esse sentido inicial de embriaguez foi se perdendo, passando "mat" a designar o que não tem polimento, brilho, ou que o perdeu. Lado "mat" de um objeto, em francês, é o lado que não brilha, o opaco. Nesse sentido, falamos de uma fotografia "mate", esmaecida, que não tem nenhuma cor, fosca, sem luminosidade. Som "mat" é um som abafado. "Mat" poderá ser também, em francês, aflito, abatido.
    A palavra aparece também através do árabe mat no sentido de "não poder se mover do lugar em que se encontra sob pena de ser morto". Em árabe e persa, temos "shah mat" ou "o rei está morto". Daí, o xeque-mate do lance do xadrez. Lembremos ainda que em italiano encontramos matto, ou seja, pessoa dominada por impulsos irracionais, que provoca mais hilaridade que apreensão ou aversão pelo seu estado; falamos também em italiano de matto (sei matto?) como privado de sentido ou como de algo muito intenso (una voglia matta). Matto pode ser também adjetivo usado para designar uma parte do corpo não sadia de todo (una gamba matta). Por último, lembremos que em português temos a palavra matusquela, que ou quem não é bom da cabeça, doido. Uma gíria afetiva ítalo-brasileira de São Paulo.
    Em inglês, o arcano é designado por The Fool (Le Fou ou Fol, em francês). Em latim, follis é um balão cheio de ar (os bons estudiosos do Tarô sempre associam o arcano 0 ao elemento ar). O verbo latino é follere, fazer o vai-e-vem de um fole (follis). No inglês, fool é o que age com falta de bom senso, uma pessoa estúpida.
 
Il Matto, em italiano
Le Mat, em francês
 
     A palavra designa também, no inglês, o bufão profissional ou aquele que, descontrolado, não sabe administrar seu tempo, seu dinheiro. Tanto em francês quanto em inglês, fou ou fool pode indicar uma pessoa de alegria muito exuberante, extravagante.
    É desse universo semântico que sai a palavra folia, divertimento, dança, brincadeira, com o sentido de loucura, porque o cérebro de um folião era comparado a um saco vazio (follis). Foliculário será o nome dado ao pasquineiro, ao jornalista de pouco ou nenhum valor
    Já a palavra bufão vem, na seqüência, do antepositivo buf, do verbo bufar, soprar, que significa também grotesco (bufo é sapo, em latim). Bufa é também ventosidade anal silenciosa e geralmente fétida. Buffa, em italiano, deu zombaria, burla. Daí, ópera-bufa, ópera de origem italiana (séc.XVIII) ligeira, satírica, espirituosa. O bufão às vezes toma o nome de bobo (este provavelmente originário de balbus, latim, gago, que fala mal, aturdido), indivíduo geralmente grotesco (anão, corcunda), que desde a Antigüidade reis e poderosos mantinham ao pé de si para se divertirem com suas caretas, suas graças e zombarias a respeito da própria corte e que podia circular por todas as dependências do palácio.
 
Till Eulenspiegel, alemão
Till l'Espiègle, francês
      Desde o século XVI, circulava na França um livro popular, Till l'Espiègle, baseado numa lenda germânica do século XIV, cujo personagem, Til, o malicioso, o esperto, o arteiro e também algo ingênuo e idiota, parece ter sido tomado para modelo da representação do arcano no Tarô de Marselha. Esta representação caracterizava a figura como um símbolo da experiência espontânea e ingênua da "loucura pura" própria da sabedoria. O mesmo tema, o dos loucos de Deus, lembremos, é encontrado na Índia shivaísta, na mística muçulmana e em outras tradições. Outro dado importante para entender este arcano é que durante a Idade Média os doentes mentais eram obrigados a usar uma blusa e um gorro com guizos. Gozavam da "liberdade dos loucos", não podendo ser responsabilizados pelo que diziam nem pelo que faziam.
    O arcano 0 ou 22 é considerado como curinga, como sabemos. Curinga é o indivíduo versátil que se presta a múltiplas e diferentes funções, capaz de atuar em várias posições e de representar diversos papéis, podendo substituir qualquer outro.
     Entre nós, no Brasil, o curinga é chamado muitas vezes de dunga, o que significa uma pessoa sem igual em sua especialidade, exímia, arrojada, excepcional. Esta palavra veio para nós da África, com os negros de Angola, zindunga, homem pertencente a uma importante sociedade secreta, aquele que age sub-repticiamente, sendo, por isso, muito importante. Já a palavra curinga, de origem também africana, Kuringa, significa fingir. O curinga em inglês é joker, que se liga a jeu, giuoco, jogo, em francês e italiano. O verbo latino é jacere, atirar, lançar. Jactabilis em latim é móvel, aquele que se movimenta com facilidade.
    O arcano 0 ou 22, como o Andarilho ou o Indefinido, designações às quais temos que incorporar forçosamente tudo o que até aqui se colocou, nada mais é, afinal, para mim, do que, na perspectiva da cultura ocidental, o deus Hermes, a divindade que une os três mundos, céu, terra e inferno. Mensageiro celeste, Hermes é também o deus ctônico, do reino subterrâneo para onde conduzia as almas. Além de deus das trocas e de todas as dualidades de que o ser humano pode fazer parte, Hermes é o deus das estradas e das encruzilhadas, dos comerciantes e mercadores. Tanto governa os caminhos que percorremos em vida como o da nossa alma depois da morte.     Assimilado ao deus Toth, o da cabeça de íbis, é mestre da sabedoria na medida em que se torna o nosso guia na busca espiritual. É ao mesmo tempo deus da Alquimia ao propor que, através do trabalho entre os elementos, a partir da materia prima (indeterminação, zero), da terra negra, cheguemos ao ouro (22). Esta, a Grande Obra que não termina nunca, alternância permanente entre formas que se conquistam e se perdem, oscilação eterna entre o 0 e o 22. Esta oscilação pode ser apreendida pelas inúmeras possibilidades de leitura que nos oferecem os ternários e septenários possíveis entre os números 1 e 21.
O uróboro (ouroborus) e a circulação
pelos quatro elementos
      O arcano 0 ou 22 pode ser visto também como uma expressão do uróboro, a serpente que engole a própria cauda. A imagem representa, sob uma forma animal, o círculo do eterno retomo, indicando que um novo começo coincide com um fim numa perpétua repetição, ou que o fim e o começo de uma via são uma mesma coisa sob o ponto de vista superior (é neste sentido que a morte é um estado intermediário e não um fim). O uróboro assinala a existência de um indiferenciado de onde todas as coisas saem e ao qual retornam.  
    Nesse sentido, o arcano 0 pode ser compreendido como um símbolo da simples repetição, onde tudo volta ao caos básico ou, ao contrário, como uma renovação perpétua que supera constantemente a mesma fase de morte e renascimento até que atinjamos o indiferenciado (divino) que está além de todos os pares de opostos, que escapa sempre de todas as categorias de nossa lógica e da nossa linguagem.
    
As origens do Tarô
 
    Quanto à origem do Tarô, impossível certamente chegar a ela. Teria ele vindo dos mistérios sapienciais do antigo Egito, das artes divinatórias da China, da Índia? Teria sido criado por Hermes Trimegisto, durante o período helenístico da história grega, ou elaborado no fim da Idade Média a partir de contribuições astrológicas, ciganas (boêmias), alquímicas, cabalísticas e cristãs? Ou é uma mistura de tudo isto e de algo que talvez nunca saibamos? A viagem que o Tarô propõe não está ligada a peregrinações, travessias de desertos, escalada de montanhas, visitas ao mundo ctônico nem à busca de paraísos como Valhala, Pasárgada, Eldorado, Bosque do Velocino de Ouro, "Pays de Cocagne", Jardim do Éden, Campos Elíseos, Terra do Nunca, Jardim das Hespérides, Ming-Tang etc. O marco zero para o início da viagem que o Tarô nos propõe deve ser colocado numa recusa, a de não querer ser mais como somos. E desse ponto em diante que pode começar, talvez, aquela que seja a única viagem que realmente interesse, a que podemos fazer ao nosso mundo interior...
 
Nota do organizador:
O texto de autoria do Prof. Cid Marcus Vasques, foi apresentado no encerramento da Jornada com os Arcanos Maiores, promovida pelo Clube do Tarô, no correr de 2005-2006. Na mesma oportunidade o Prof. Cid Marcus abordou Algumas questões semânticas , que também compõe o acervo deste site.
 
 
  Baralho Cigano
  Tarô Egípcio
  Quatro pilares
  Orientação
  O Momento
  I Ching
Publicidade Google
 
Todos os direitos reservados © 2005-2020 por Constantino K. Riemma  -  São Paulo, Brasil