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21 de novembro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


O Tarot nas trincheiras
do empoderamento do feminismo
Alanna Souto
"Arreda homem que aí vem mulher!"
Canto da Umbanda, presente nos terreiros e
que faz parte da tradição oral desta religião.
Michelle Perrot, na introdução do seu livro “As mulheres ou os silêncios da história”, faz a seguinte analogia sobre a invisibilidade e o calar engendrado às mulheres desde os primórdios bíblicos da cultura ocidental:
 
No início era o Verbo, mas o Verbo era Deus e homem. O silêncio é comum das mulheres. Ele convém à sua posição secundária e subordinada. Ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não deformados pela impertinência do riso barulhento e viril. Bocas fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as mulheres só podem chorar, deixar as lágrimas correrem como a água de uma inesgotável dor, da qual, segundo Michelet, ela ‘detém o sacerdócio’ (PERROT, 2005, p.9).
 
Durante séculos, o silêncio é um mandamento que foi cristalizado, “sacralizado” nas mentes e na negação das vozes femininas. Esse silêncio era, ao mesmo tempo, disciplina do mundo, das famílias e dos corpos; regras políticas, sociais e familiares, entre as paredes das casas urbanas ou da floresta colonizada e explorada por europeus, abafam os gritos das mulheres e crianças violentadas por seus tutores, cônjuges e algozes.
Capas de livros de Michelle Perrot
Capas de livros de Michelle Perrot
As mulheres não estão solitárias neste silêncio ensurdecedor, que destruiu continentes invadidos, assaltados e aniquilados em suas culturas. Américas e Áfricas se conectam em uma história de esquecimento de suas identidades, crenças e saberes mutilados. Contudo, ainda assim é sobre “elas” que pesa mais fortemente a opressão em razão da desigualdade dos sexos em que esta “valência diferencial” (Héritier, 2002) marca as estruturas do passado das sociedades.
Neste contexto, o tarot não deve ficar de fora do debate sobre o empoderamento do gênero feminino. Como e de que forma se pode refletir sobre o tarot e a questão do empoderamento feminino? Primeiramente, O que o leitor sabe sobre o significado dessa expressão “empoderamento feminino”? Apropriar-se deste conceito é fundamental, independente do gênero, especialmente em um mundo machista no qual as mulheres ainda são tratadas de forma paternalista por seus pares masculinos; o homem, o líder, o leão que sempre vem na frente; a mulher, a apoiadora que exerce um papel mais secundário, sobretudo na vida pública. Para, além disso, muitas mulheres dependem desta “cabeça de família”, seja emocional ou economicamente.
Nesta desigualdade - enraizada na escrita de uma história que pouco revela a diversidade das representações da mulher nos espaços, especialmente, nos espaços públicos de poder (espaço concebido) - a proliferação de discursos e imagens acerca da figura feminina são mais inventados e imaginados do que contados e descritos por suas próprias vozes, vivências e olhares, em um mundo em que sua movimentação e representatividades ainda são construídas pela perspectiva do homem que ao subjugar, agredir, silenciar ou rivalizar, se faz dominante.
Queima de sutiãs nos anos de 1960
Fotos do movimento feminista de Queima de Sutiãs nos anos de 1960
Apesar dos avanços, desde a queima dos sutiãs nos anos de 1960, a permanência desse bloco patriarcal opressor, que está pouco disposto a visibilizar e a reconhecer mulheres libertas do heteropatriarcado em espaços que se fazem sob dominação de uma cultura machista, tem prevalecido diante de tantas mudanças e conquistas femininas nos últimos tempos. É o que Bourdieu (1999) em sua obra “A dominação masculina” chama de a “permanência na mudança”, isto é, a permanência da posição relativa entre os sexos apesar dessas conquistas.
Dos exemplos desta “permanência na mudança” no processo histórico de empoderamento da mulher, podemos recordar das vozes dissonantes das primeiras mulheres que conseguiram ter acesso à educação superior somente no final do século XIX com a lei Leôncio Carvalho, em 1879. Deve-se lembrar, também, que a primeira mulher brasileira a cursar uma universidade foi uma branca, graduada na faculdade de medicina da Bahia em 1887; ou seja, no Brasil, o dolo contra a mulher não é somente uma questão de gênero, mas de classe e de “raça”.
Sim, eu que sou uma mulher do século passado, me dói na alma a herança de tanta exclusão, violência e outros tantos atos atrozes cometidos por uma sociedade terrivelmente machista, desde a chegada dos Europeus nas Américas ou, ainda, na mãe África, onde várias culturas, que se constituem matriarcais em seus berços, foram extintas. A lenda das Amazonas, por exemplo, até hoje é revivida pela cultura Caiapó, em que as índias anualmente celebram o “Mebióki”, o ritual das Amazonas, que se realiza em época lunar específica, quando tomam uma postura mais ativa e valente, abandonando seus clãs e invadindo a “casa dos homens”, uma organização proibida às índias. Reviver esta ancestralidade matriarcal é genial. Desta forma bem particular, as mulheres da tribo dos Kaiapós afirmam seu empoderamento dentro desta sociedade, na qual há a predominância da hierarquia masculina.
Guerreiras icamiabas no Amazonas
As índias guerreiras icamiabas, avistadas em 1542 na região da atual Floresta Amazônica, foram
chamadas pelos europeus de amazonas. Associaram-nas às lendárias amazonas da mitologia grega,
exímias guerreiras que andavam a cavalo. Gravura de André Thevet publicada em 1557.
In: Les Singularités de La France Antartique. Domínio público, Biblioteca Nacional da França
Gravura e legenda em www.multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/america-portuguesa
Já no âmbito da sociedade civil, as mulheres, com muito suor, lágrima e alegria - tal qual as índias Kaipós, tentam revisitar as icamiabas existentes dentro delas na luta por acesso aos espaços e, principalmente, pela equidade de direitos. Bingo! A palavra que, para mim, define bem o termo “empoderamento feminino” é a “igualdade de direitos”. As sociedades matriarcais dos referidos povos, a exemplo do mito das Amazonas ou das sociedades matriciais africanas, foram as que estiveram mais próximas do exercício dessa igualdade direitos. Não à toa que Elisa Larkin Nascimento (2008), em sua obra "A matriz africana no mundo", provoca sobre qual civilização é mais avançada: a matrilinear, que exercita direitos mais igualitários entre os gêneros, garantindo assim o papel de todos na vida coletiva ou a que nega à metade da população sua plena condição humana? Elementar que as sociedades matriciais são mais justas.
Todo este preâmbulo nos ajuda a entender de que forma o tarot na cultura ocidental pode e poderá servir como uma ferramenta de empoderamento feminino a começar pelo entendimento de que o Tarot de Marselha, que conhecemos hoje, tem suas origens nos séculos XIV, XV, ainda no período medieval e que, apesar da conjuntura das trevas que censurava e enquadrava a mulher como ser dócil, recatada e do lar, já trazia em sua composição vários arquétipos que buscam afirmar a representação feminina em uma sociedade extremamente machista e cristã. Ou seja, o tarot, além de ser um oráculo, é um viés psicanalítico para o entendimento do inconsciente coletivo, especialmente para os “junguianos”, sendo também uma ferramenta de autoconhecimento e orientação dos possíveis caminhos sincrônicos dos tempos (passado, presente e futuro); o tarot foi um instrumento visionário, a frente do seu tempo no que diz respeito à afirmação da representatividade feminina nas cartas, sobretudo na composição dos seus 22 arcanos maiores.
Dos vinte e dois arcanos maiores, na minha perspectiva, oito são arquétipos de representações femininas: a Sacerdotisa, a Imperatriz, a Força, a Justiça, a Morte, a Temperança, a Estrela e a Lua. E como se trata apenas de um ensaio sobre o tarot como ferramenta de empoderamento feminino, irei analisar sucintamente dois desses arcanos que ajudam a mulher a se impor, enquanto ou figura feminina, intuitiva e sensível, porém forte, objetiva e sábia, dentro de uma sociedade que, historicamente, se fez machista, patriarcal e racista.
Cartas do Tarô de Marselha: Lua, Justiça e Morte
XVIII - A Lua, VIII - A Justiça e XIII - A Morte
Cartas do Tarô de Marselha restauradas por Alexandre Jodorowsky e Phillippe Camoin
As cartas analisadas são: a XVIII - A Lua e a XI - A Força. Ambas, assim como as outras seis, são ótimos exemplos de poder feminino, contudo escolhi a carta XVIII pelo aspecto ambivalente desse arcano. A Lua é simbolicamente reverenciada e associada à deusa das culturas pagãs, especialmente pelos wiccanos. Neste sentido, ela é a grande Mãe, a que acolhe, absorve, mas também é aquela que pode ser extremamente severa com quem lhe invade o útero - o que nos remete ainda ao signo de câncer, às yabás Yemanjá/Oxum e à esfera Yesod da Árvore da Vida.
A natureza feminina lunar é reativa e vingativa, não no aspecto mesquinho do homem, do “prato que se come frio”, mas na perspectiva dos caminhos do tarot, quando conectada a outra carta feminina, a da Justiça, onde a balança que registra a transgressão e executa a espada sobre a obsessão, invasões e furtos na casa da lua ferina, pois até chegar nela, a Morte e a Temperança, equilibradamente, já deliberaram em sua causa.
A carta da Força é uma das minhas preferidas por ser bastante simbólica no que diz respeito ao ser feminino, que foi construído para ser frágil, passivo e secundário - especialmente neste período de meados do medievo em que as cartas se expandiram na Europa com maior popularidade. Contudo, no tarot, a Força é representada por uma mulher que não usa a força física de nenhuma maneira, como geralmente os homens fazem para expressarem que são fortes e dominadores; aqui, a Força é representada por uma mulher com o símbolo do lemniscata na cabeça, que remete ao equilíbrio rítmico e dinâmico entres dois polos opostos: um oito deitado, que, na matemática, é o símbolo do infinito. Dessa forma, a mulher dotada de toda essa sabedoria, não somente consegue derrotar o Leão, que dependendo do contexto pode ser aquele pai opressor, o sabotador ou o manipulador, como também pode dominá-lo sutilmente, abrindo sua boca e o colocando no seu devido lugar.
Cartas do Tarô de Marselha : Temperança, Força e Mundo
XIV - Temperança, XI - A Força e XXI - O Mundo
Cartas do Tarô de Marselha restauradas por Alexandre Jodorowsky e Phillippe Camoin
Quer prova maior do que esta, referente ao processo para se adquirir Força e conseguir se recuperar, se curar e lutar contra seus opressores (Leão) ou contra sua própria (auto) opressão para garantir sua existência, suas realizações e seu amor (próprio), aspectos tão importantes para a mulher, dentro e fora do lar, para a garantia do seu empoderamento feminino?
Outra carta que gosto muito é a XXI, uma das mais positivas do tarot, que apresenta uma simbologia andrógina, de harmonia, de realização e de conclusão de ciclos e está conectada com um ser cujas figurações masculinas e femininas se fundem em um indicativo de UNO, um toque da criação, das faces maternas e paternas do Cosmo, a redenção; a chegada na reta final equilibrado(a) em suas duplas polaridades e identidades, afinal a ideia evolutiva e libertadora é se fazer uno, ativar a centeia do Criador e da Criatriz e não se perder no debate de quais são os sexos dos anjos.
Equidade de direitos, ser mulher empoderada, forte e feliz é bem mais importante: é algo prioritário! E o tarot, sem dúvida, nos direciona para isso, pois liberta e faz voar sem se perder da fonte. Terra à vista! O tempo urge!
 
Referências:
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, 160p.
HÉRITIER, Françoise. Masculino, feminino: dissolver a hierarquia. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. Coleção Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira volume 1.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da História. Bauru: Edusc, 2005. 520p.
SIMONSEN, Betoh. Linguagens Simbólicas - os aspectos do feminino. Disponível em www.clubedotaro.com.br/site/m33_Betoh_feminino.asp. Acesso em: 20 jun. 2017.
 
Alanna Souto - Historiadora e doutoranda na Universidade de Algarve
e no Centro História de Além-Mar (CHAM), em Lisboa, Portugal.
É cabalista praticante, umbandista de coração e autora do site:
www.semeadura.com
Edição: CKR – 4/08/2017
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