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O Tarot nas trincheiras
do empoderamento do feminismo |
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"Arreda homem que aí vem mulher!" |
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Canto da Umbanda, presente nos terreiros e
que faz parte da tradição oral desta religião. |
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Michelle Perrot, na introdução do seu livro “As mulheres ou os silêncios da história”, faz a seguinte analogia sobre a invisibilidade e o calar engendrado às mulheres desde os primórdios bíblicos da cultura ocidental: |
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No início era o Verbo, mas o Verbo era Deus e homem. O silêncio é comum das mulheres. Ele convém à sua posição secundária e subordinada. Ele cai bem em seus rostos, levemente sorridentes, não deformados pela impertinência do riso barulhento e viril. Bocas fechadas, lábios cerrados, pálpebras baixas, as mulheres só podem chorar, deixar as lágrimas correrem como a água de uma inesgotável dor, da qual, segundo Michelet, ela ‘detém o sacerdócio’ (PERROT, 2005, p.9). |
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Durante séculos, o silêncio é um mandamento que foi cristalizado, “sacralizado” nas mentes e na negação das vozes femininas. Esse silêncio era, ao mesmo tempo, disciplina do mundo, das famílias e dos corpos; regras políticas, sociais e familiares, entre as paredes das casas urbanas ou da floresta colonizada e explorada por europeus, abafam os gritos das mulheres e crianças violentadas por seus tutores, cônjuges e algozes. |
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Capas de livros de Michelle Perrot |
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As mulheres não estão solitárias neste silêncio ensurdecedor, que destruiu continentes invadidos, assaltados e aniquilados em suas culturas. Américas e Áfricas se conectam em uma história de esquecimento de suas identidades, crenças e saberes mutilados. Contudo, ainda assim é sobre “elas” que pesa mais fortemente a opressão em razão da desigualdade dos sexos em que esta “valência diferencial” (Héritier, 2002) marca as estruturas do passado das sociedades. |
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Neste contexto, o tarot não deve ficar de fora do debate sobre o empoderamento do gênero feminino. Como e de que forma se pode refletir sobre o tarot e a questão do empoderamento feminino? Primeiramente, O que o leitor sabe sobre o significado dessa expressão “empoderamento feminino”? Apropriar-se deste conceito é fundamental, independente do gênero, especialmente em um mundo machista no qual as mulheres ainda são tratadas de forma paternalista por seus pares masculinos; o homem, o líder, o leão que sempre vem na frente; a mulher, a apoiadora que exerce um papel mais secundário, sobretudo na vida pública. Para, além disso, muitas mulheres dependem desta “cabeça de família”, seja emocional ou economicamente. |
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Nesta desigualdade - enraizada na escrita de uma história que pouco revela a diversidade das representações da mulher nos espaços, especialmente, nos espaços públicos de poder (espaço concebido) - a proliferação de discursos e imagens acerca da figura feminina são mais inventados e imaginados do que contados e descritos por suas próprias vozes, vivências e olhares, em um mundo em que sua movimentação e representatividades ainda são construídas pela perspectiva do homem que ao subjugar, agredir, silenciar ou rivalizar, se faz dominante. |
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Fotos do movimento feminista de Queima de Sutiãs nos anos de 1960 |
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Apesar dos avanços, desde a queima dos sutiãs nos anos de 1960, a permanência desse bloco patriarcal opressor, que está pouco disposto a visibilizar e a reconhecer mulheres libertas do heteropatriarcado em espaços que se fazem sob dominação de uma cultura machista, tem prevalecido diante de tantas mudanças e conquistas femininas nos últimos tempos. É o que Bourdieu (1999) em sua obra “A dominação masculina” chama de a “permanência na mudança”, isto é, a permanência da posição relativa entre os sexos apesar dessas conquistas. |
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Dos exemplos desta “permanência na mudança” no processo histórico de empoderamento da mulher, podemos recordar das vozes dissonantes das primeiras mulheres que conseguiram ter acesso à educação superior somente no final do século XIX com a lei Leôncio Carvalho, em 1879. Deve-se lembrar, também, que a primeira mulher brasileira a cursar uma universidade foi uma branca, graduada na faculdade de medicina da Bahia em 1887; ou seja, no Brasil, o dolo contra a mulher não é somente uma questão de gênero, mas de classe e de “raça”. |
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Sim, eu que sou uma mulher do século passado, me dói na alma a herança de tanta exclusão, violência e outros tantos atos atrozes cometidos por uma sociedade terrivelmente machista, desde a chegada dos Europeus nas Américas ou, ainda, na mãe África, onde várias culturas, que se constituem matriarcais em seus berços, foram extintas. A lenda das Amazonas, por exemplo, até hoje é revivida pela cultura Caiapó, em que as índias anualmente celebram o “Mebióki”, o ritual das Amazonas, que se realiza em época lunar específica, quando tomam uma postura mais ativa e valente, abandonando seus clãs e invadindo a “casa dos homens”, uma organização proibida às índias. Reviver esta ancestralidade matriarcal é genial. Desta forma bem particular, as mulheres da tribo dos Kaiapós afirmam seu empoderamento dentro desta sociedade, na qual há a predominância da hierarquia masculina. |
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As índias guerreiras icamiabas, avistadas em 1542 na região da atual Floresta Amazônica,
foram
chamadas pelos europeus de amazonas. Associaram-nas às lendárias amazonas da mitologia grega,
exímias guerreiras que andavam a cavalo. Gravura de André Thevet publicada em 1557.
In: Les Singularités de La France Antartique. Domínio público, Biblioteca Nacional da França |
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Gravura e legenda em www.multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/america-portuguesa |
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Já no âmbito da sociedade civil, as mulheres, com muito suor, lágrima e alegria - tal qual as índias Kaipós, tentam revisitar as icamiabas existentes dentro delas na luta por acesso aos espaços e, principalmente, pela equidade de direitos. Bingo! A palavra que, para mim, define bem o termo “empoderamento feminino” é a “igualdade de direitos”. As sociedades matriarcais dos referidos povos, a exemplo do mito das Amazonas ou das sociedades matriciais africanas, foram as que estiveram mais próximas do exercício dessa igualdade direitos. Não à toa que Elisa Larkin Nascimento (2008), em sua obra "A matriz africana no mundo", provoca sobre qual civilização é mais avançada: a matrilinear, que exercita direitos mais igualitários entre os gêneros, garantindo assim o papel de todos na vida coletiva ou a que nega à metade da população sua plena condição humana? Elementar que as sociedades matriciais são mais justas. |
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Todo este preâmbulo nos ajuda a entender de que forma o tarot na cultura ocidental pode e poderá servir como uma ferramenta de empoderamento feminino a começar pelo entendimento de que o Tarot de Marselha, que conhecemos hoje, tem suas origens nos séculos XIV, XV, ainda no período medieval e que, apesar da conjuntura das trevas que censurava e enquadrava a mulher como ser dócil, recatada e do lar, já trazia em sua composição vários arquétipos que buscam afirmar a representação feminina em uma sociedade extremamente machista e cristã. Ou seja, o tarot, além de ser um oráculo, é um viés psicanalítico para o entendimento do inconsciente coletivo, especialmente para os “junguianos”, sendo também uma ferramenta de autoconhecimento e orientação dos possíveis caminhos sincrônicos dos tempos (passado, presente e futuro); o tarot foi um instrumento visionário, a frente do seu tempo no que diz respeito à afirmação da representatividade feminina nas cartas, sobretudo na composição dos seus 22 arcanos maiores. |
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Dos vinte e dois arcanos maiores, na minha perspectiva, oito são arquétipos de representações femininas: a Sacerdotisa, a Imperatriz, a Força, a Justiça, a Morte, a Temperança, a Estrela e a Lua. E como se trata apenas de um ensaio sobre o tarot como ferramenta de empoderamento feminino, irei analisar sucintamente dois desses arcanos que ajudam a mulher a se impor, enquanto ou figura feminina, intuitiva e sensível, porém forte, objetiva e sábia, dentro de uma sociedade que, historicamente, se fez machista, patriarcal e racista. |
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XVIII - A Lua, VIII - A Justiça e XIII - A Morte |
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Cartas do Tarô de Marselha restauradas por Alexandre Jodorowsky e Phillippe Camoin |
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As cartas analisadas são: a XVIII - A Lua e a XI - A Força. Ambas, assim como as outras seis, são ótimos exemplos de poder feminino, contudo escolhi a carta XVIII pelo aspecto ambivalente desse arcano. A Lua é simbolicamente reverenciada e associada à deusa das culturas pagãs, especialmente pelos wiccanos. Neste sentido, ela é a grande Mãe, a que acolhe, absorve, mas também é aquela que pode ser extremamente severa com quem lhe invade o útero - o que nos remete ainda ao signo de câncer, às yabás Yemanjá/Oxum e à esfera Yesod da Árvore da Vida. |
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A natureza feminina lunar é reativa e vingativa, não no aspecto mesquinho do homem, do “prato que se come frio”, mas na perspectiva dos caminhos do tarot, quando conectada a outra carta feminina, a da Justiça, onde a balança que registra a transgressão e executa a espada sobre a obsessão, invasões e furtos na casa da lua ferina, pois até chegar nela, a Morte e a Temperança, equilibradamente, já deliberaram em sua causa. |
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A carta da Força é uma das minhas preferidas por ser bastante simbólica no que diz respeito ao ser feminino, que foi construído para ser frágil, passivo e secundário - especialmente neste período de meados do medievo em que as cartas se expandiram na Europa com maior popularidade. Contudo, no tarot, a Força é representada por uma mulher que não usa a força física de nenhuma maneira, como geralmente os homens fazem para expressarem que são fortes e dominadores; aqui, a Força é representada por uma mulher com o símbolo do lemniscata na cabeça, que remete ao equilíbrio rítmico e dinâmico entres dois polos opostos: um oito deitado, que, na matemática, é o símbolo do infinito. Dessa forma, a mulher dotada de toda essa sabedoria, não somente consegue derrotar o Leão, que dependendo do contexto pode ser aquele pai opressor, o sabotador ou o manipulador, como também pode dominá-lo sutilmente, abrindo sua boca e o colocando no seu devido lugar. |
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XIV - Temperança, XI - A Força e XXI - O Mundo |
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Cartas do Tarô de Marselha restauradas por Alexandre Jodorowsky e Phillippe Camoin |
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Quer prova maior do que esta, referente ao processo para se adquirir Força e conseguir se recuperar, se curar e lutar contra seus opressores (Leão) ou contra sua própria (auto) opressão para garantir sua existência, suas realizações e seu amor (próprio), aspectos tão importantes para a mulher, dentro e fora do lar, para a garantia do seu empoderamento feminino? |
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Outra carta que gosto muito é a XXI, uma das mais positivas do tarot, que apresenta uma simbologia andrógina, de harmonia, de realização e de conclusão de ciclos e está conectada com um ser cujas figurações masculinas e femininas se fundem em um indicativo de UNO, um toque da criação, das faces maternas e paternas do Cosmo, a redenção; a chegada na reta final equilibrado(a) em suas duplas polaridades e identidades, afinal a ideia evolutiva e libertadora é se fazer uno, ativar a centeia do Criador e da Criatriz e não se perder no debate de quais são os sexos dos anjos. |
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Equidade de direitos, ser mulher empoderada, forte e feliz é bem mais importante: é algo prioritário! E o tarot, sem dúvida, nos direciona para isso, pois liberta e faz voar sem se perder da fonte. Terra à vista! O tempo urge! |
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Referências: |
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BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, 160p. |
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HÉRITIER, Françoise. Masculino, feminino: dissolver a hierarquia. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. |
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NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.). A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008. Coleção Sankofa: Matrizes africanas da cultura brasileira volume 1. |
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PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da História. Bauru: Edusc, 2005. 520p. |
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SIMONSEN, Betoh. Linguagens Simbólicas - os aspectos do feminino. Disponível em www.clubedotaro.com.br/site/m33_Betoh_feminino.asp. Acesso em: 20 jun. 2017. |
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Alanna Souto -
Historiadora e doutoranda na
Universidade de Algarve
e no Centro História de Além-Mar (CHAM), em Lisboa, Portugal.
É cabalista praticante, umbandista de coração e autora do site:
www.semeadura.com |
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