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21 de novembro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


Concepções históricas, imaginárias, iconográficas
e simbólicas do feminino no Tarô
Ricardo Pereira
 
O imaginário humano é historicamente alimentado por vários tipos simbólicos, manifestados, dentre muitos, em formas míticas ou mitológicas, com a prevalência de seres que encarnam e expressam, sobretudo, as forças da natureza.
É possível observar em diversas abordagens de historiadores da arte sobre a arte minóica, do terceiro e do segundo milênios antes de Cristo, afirmações que, por essa época, os artistas já demonstravam uma imaginação aberta para os horizontes de uma mitologia fundamentalmente naturalista.
Sabe-se, que os adeptos dos muito antigos cultos naturalistas ou “naturistas” veneravam forças misteriosas a fim de garantirem a fecundidade da natureza, dos solos e dos animais. Eram essas forças atributos de divindades protetoras das colheitas, dos rebanhos e das fontes de água. Cada lugar tinha as suas próprias divindades
No âmbito do Tarô, o mito do feminino é concebido iconograficamente perpassando por vários arcanos, nos quais se encontram encerrados vários elementos simbólicos associados à natureza, à terra como força geradora, à mulher como sua principal representante. Em contraponto, tal mito denota simbolicamente, estagnação, aprisionamento, cilada, unilateralidade, fixação e até privação.
Essa linguagem simbólica feminina atravessa tempos cósmicos, históricos e o Tarô a expressa, iconográfica e esteticamente, utilizando-se de mecanismos como signos, alegorias, metáforas, arquétipos e mitos, muitos deles criados e contemplados na época primitiva, dos nômades caçadores e, posteriormente, nos primórdios da agricultura, ou seja, bem antes dos tempos que remontam à Antiguidade clássica, adentrando-se à Europa medieva e renascentista, passando pela idade moderna, chegando ainda bastante atual nos cenários da contemporaneidade, legitimando a primordial hierofania intrínseca à relação da mulher com o divino espírito da terra, do mundo e, por que não reafirmar, parafraseando Eliade (1992), com o cosmos.
 
O Tempo ou Roda da Fortuna
Neste arcano vê-se as três faces
da Deusa (a Virgem ou donzela,
a Mãe e a Velha Sábia).
Por trás é observada uma
gigantesca vagina, principal representação simbólica
do feminino.
Sensual Wicca Tarot by Mesar Nada
& Elisa Poggese (2007).
Segundo Argan (2004) “[...] as primeiras manifestações artísticas remontam, todavia, uma época muito mais longínqua, ao fim do Paleolítico. Dezenas de milênios a. C os homens, que viviam da caça e da coleta ocasional de frutas silvestres, já conheciam o valor da imagem ou da figuração.”
Dentre as mais antigas idealizações artísticas do feminino, destacam-se, como exemplos, algumas estatuetas rupestres, denominadas, aqui, de "três Vênus ou de "três deusas".
As três Vênus
In Moorey, Teresa. A Deusa, 2002
 
A primeira é a Vênus de Willendorf (à esquerda, na ilustração ao lado), estatueta de pedra calcária medindo  11,1 cm de altura. Foi descoberta em 1908 pelo arqueólogo Josef Szombathy no sítio arqueológico do paleolítico situado perto de Willendorf, na Áustria, podendo ter sido esculpida em pelo menos 24.000 a. C.  A segunda é  a Vênus de Laussel (à direita) ou "mulher com corno", estatueta de 43 cm de altura pertencente à arte paleolítica, encontrada em 1909, pelo doutor Gaston Lalanne, em Dordonha na França, podendo ter sido esculpida entre 22.000 ou 18.000 a. C. A terceira é a estatueta de terracota, denominada de Vênus de Dolní Vestonice, datada entre 29.000 a.C. e 25.000 a.C., encontrada na República Tcheca, em 1924, pelo arqueólogo Karel Absolon.
Devido a essas três estátuas apresentarem traços volumosos, aparentemente estados de gravidez e seios pendulares, inferiu-se que elas poderiam ter alguma relação simbólica com os conceitos de fertilidade e abundância, sendo, portanto, associações míticas da "Grande Mãe", ou ainda, da "Mãe Terra".
Em um período anterior ao primeiro milênio a. C. , conforme Escolástica (1995) "[...] divindades surgiam em cada canto, bastando para isso um fenômeno qualquer –
boas colheitas, tempestades, um raio que fendesse a terra – e ali era erigido um santuário e um novo culto era criado em homenagem a uma deusa. Vivia-se à espreita de sinais que vinham da terra ou do céu e o ser humano postava-se em adoração como um servo e devoto da natureza."
Nesse contexto das representações do feminino, essa simbologia da Deusa, da "Grande Mãe" é bem conhecida, estabelecendo-se e fortalecendo-se a partir do período neolítico (8.000 anos a. C.), associando-se ao vínculo existente entre a terra e a natureza, os ciclos e a fertilidade. Por essa época o matriarcado emerge e se estabelece nas civilizações neolíticas, assim como a noção da ligação simbólica existente entre a mulher e a terra, estando ligados a elas os fenômenos do nascimento e da morte.
Toda essa hierofania é encontrada, por exemplo, na antiga Índia, com a deusa Parvati e na antiga Frígia, com a deusa Cibeli, símbolos manifestos de sagração da natureza, das forças da terra, correspondendo aos fenômenos da fertilidade e da gestação femininas; a terra sempre associada à mulher, representando a grande mãe: fecunda, geradora, provedora. A figura da Deusa impera absoluta por esse período.
A deusa Parvati e a deusa Cibeli
In www.godessaday.com e www.artmuseum.gov.mo
Mesmo com a constituição posterior de uma cultura ou de um sistema patriarcal, segundo Campbell (1988), iniciado com os hebreus, que transferiu o poder do ventre ao falo; ou do estabelecimento histórico de todo um sistema de repressão em torno do feminino, as representações da mulher sobrevivem através da conscientização de sua ampla e poderosa energia com caráter, para muitos, sagrado, concreta do ponto de vista de sua existência como um centro gerador de criação e da vida, como profunda fonte, até os dias de hoje, não só de edificação, mas também de inspiração.
No Ocidente, as antigas culturas greco-romanas divinizaram representações do feminino através da constituição de um panteão de deusas conectadas à natureza, à beleza e ao processo de gestação em analogia a simbologia da lua, cultuando-se deusas como Afrodite, no que diz respeito aos gregos, e Vênus, no que se refere aos romanos e, ao longo do tempo, à Virgem Maria com a consolidação, em solo europeu, do cristianismo católico apostólico romano, lançando-se as bases de construção simbólica e cultural da mulher no mundo ocidental. Sobre esse aspecto destaca Moura (2010):
Madonna e o Menino
Gravura de Andrea Mantegna (1431-1506)
 
 
É importante considerar também a possível transmutação das deusas gregas e romanas no mito cristão da Virgem. Gonzáles de Chaves situa a Virgem Maria ao final de uma cadeia evolutiva iniciada com as deusas clássicas da cultura ocidental, sugerindo que "a mulher tem estado cercada do sagrado". Isso quer dizer que a construção da mulher na cultura ocidental envolveu diferentes discursos (clássico, medieval, moderno, pós-moderno) e problemáticas históricas, que de certa forma vão modelar sua identidade.
É evidente que na Idade Média a Igreja pretendeu, com o prenúncio da Ciência que já a incomodava com suas revelações “indiscretas”, lançar política e estrategicamente sobre solo europeu uma espécie de fé cega não só na infalibilidade papal, mas, sobretudo no caráter imaculado da Virgem, dotando-a de honras a fim de transformá-la, aos olhos cristãos, em uma deusa, ou melhor, em uma “virgem-mãe” representação comum nos contos e mitos populares orientais e pagãos, os quais precedem ao advento do Cristianismo católico, como diz Blavatsky (2008):
 
[...] a ‘Virgem Imaculada’ fora transformada em uma Divindade Olímpica que, tendo sido, por sua própria natureza, colocada na impossibilidade de cometer um pecado, não pode pretender nenhuma virtude, nem mérito pessoal por sua pureza, precisamente porque, como nos ensinaram a acreditar na nossa juventude,
 
ela foi escolhida entre todas as mulheres. Se Sua Santidade a privou dessa virtude, talvez ele pense, por outro lado, tê-la dotado de pelo menos um atributo físico, que as outras deusas-virgens não possuem. Mas mesmo esse novo dogma, que, associado à nova pretensão de infalibilidade, quase revolucionou o mundo cristão, não é propriedade original da Igreja de Roma. Trata-se apenas de um retorno a uma heresia quase esquecida dos tempos do Cristianismo primitivo, a dos coliridianos, assim chamados porque ofereciam bolos em sacrifício à Virgem, a qual acreditavam ter nascido de uma Virgem. A nova fórmula ‘Ó Virgem Maria, concebida sem pecado’ é simplesmente uma aceitação tardia daquilo que os padres ortodoxos chamavam no começo de uma ‘heresia blasfema’.
Nesse contexto de exaltação na Idade Média, por parte de Sua Santidade e dos clérigos católicos, à imagem da Virgem-Mãe Imaculada, é possível observar por essa época ou ao mesmo tempo a adoção de uma determinada estética, na obra artística amparada sob orientações claras dessa instituição religiosa, de evitação a qualquer expressão profana ou “erótica” do corpo feminino, símbolo de manifestação do próprio mal.
Embora na Idade Média não se possa falar da existência de uma arte erótica, o pintor medievo relegou ao “erótico”, imagens iconográficas contidas em representações artísticas do Inferno. Corpos nus femininos, principalmente os de mulheres adultas, quase não são observados em pinturas dos primeiros 50 anos do século XV, com exceção de imagens de Eva no paraíso. Dessa mesma forma, nas lâminas dos Tarôs desse período, naqueles ditos Tarôs Clássicos, o nu feminino é desprivilegiado, embora para o povo medieval o corpo humano, juntamente com o universo e a natureza, fosse considerado algo sagrado e cada coisa carregada de altos teores alegóricos e valores simbólicos. A exibição miraculosa, fantástica, maravilhosa, sobrenatural da nudez feminina servia muitas vezes como uma espécie de alerta contra o pecado.
Eva - escultura em mármore
de Antonio Rizzo (1465-1499)
In Palazzo Ducale - Veneza (Italia)
 
É por essa perspectiva, que as representações femininas em sua maioria, naqueles Tarôs medievos, com destaque para os do período renascentista, trazem imagens de mulheres, apresentando-se austeramente vestidas ou encobertas por longas túnicas.
Nesse contexto, os arcanos maiores também não nominados, atribuídos ao artista italiano Bonifácio Bembo, do Tarô Visconti-Sforza (Pierpont Morgam Library & Família Bergamo - 1435/40?), publicado hoje pela editora norte-americana U.S. Games Systems, Inc., "A Papisa" e "A Imperatriz", destacam-se por suas longas e folgadas túnicas, como podem ser observadas abaixo.
A Papisa e a Imperatriz
Visconti Sforza Pierpont Morgan-Bergamo Tarot
Bonifacio Bembo (1435-40)
US Games System Inc - www.albideuter.de
 
Nessa ordem de arcanos maiores ora citados, observa-se nesse primeiro uma espécie de vestimenta sacerdotal ou seria um hábito da Ordem Umiliata de Biossano? E, no segundo arcano uma túnica renascentista, típica das mulheres da nobreza européia. O dourado é a cor predominante na iconografia das cartas.
A túnica renascentista, vestuário feminino bem antigo, consistia, segundo Laver (1989),  de uma saia ampla, ricamente bordada e uma blusa, com mangas ajustadas aos braços e compridas, a ela costuradas, podendo-se vestir sobre essa peça uma beca ou houppelande, caindo em pregas amplas até o chão, com cintura apertada por uma faixa. Nesse conjunto de vestimentas predominavam cores como, ouro ou dourado, escarlate e púrpura (símbolos da realeza e dos eclesiásticos), azul e verde,  as preferidas no vestuário de reis, rainhas, clérigos, aristocratas e nobres da corte européia medieva, tudo isso também muito bem destacado na iconografia de alguns dos tarôs
pertencentes a essa época, inclusive no Visconti-Sforza e, significativamente, em tantas outras obras da pintura medieval. O gosto pela cor e pela luz na Idade Média não é evidente apenas nas roupas, destaca Eco (2010), revela-se ainda nos costumes cotidianos, esteticamente nos enfeites e nas armas.
Nesse conjunto de vestuário medieval é, ainda, observado sobre a cabeça feminina um finíssimo véu, apetrecho muito antigo e sem origem certa que, desde o século XIII, era usado como símbolo de virtuosidade e honradez pelas mulheres casadas, retratando a sua subordinação ao homem, e que, aos poucos, vai sendo  abandonado por elas em seu modelo tradicional, mas continuamente visto nas cabeças de freiras e viúvas, ou sendo substituídos por outros de desenhos ou formas caracteristicamente inovadores, mas, não deixando de se perpetuar em reminiscências através da arte.
Retrato de Giovanni Arnolfini e sua esposa (1434) e a Rainha de Ouros (Tarô Visconti Sforza - 1440)
Tela de Jan van Eyck (1395-1441) no National Gallery, Londres (Inglaterra)
e carta desenhada por Bonifácio Bembo, por volta de 1440 (US Games)
À arte e à beleza na estética medieval, segundo Eco (2010), conferiu-se uma espécie de sentimento do homem, do mundo e da divindade típicos da visão cristã, de uma concepção da beleza puramente inteligível, metafísica, de ordem cósmica, fundada em uma idéia de moral aos moldes de um pensamento escolástico, o qual fora substituído gradativamente no Renascimento a partir da retomada de interesse pelos clássicos gregos e às idéias de Platão, até então ignorados na Idade Média. É a vez do humanismo, do neoplatonismo e do antropocentrismo.
O Nascimento de Vênus (1484) de Sandro Boticcelli (1445-1510)
na Galleria degli Uffizi - Florença (Itália)
Nesse contexto, no auge do Renascimento, por volta de 1450 vê-se um novo sentido ou olhar artístico sobre o feminino (e não sobre a mulher, sua importância e o seu papel social) nas obras de vários artistas, dentre eles Botticelli. Como destaca Moura (2010):
 
O período da Renascença trouxe uma nova significação para o feminino, aqui o 'dom' da beleza é associado ao divino, e, nesse caso a mulher bela estaria mais próxima da divindade, com isso, no século XV algumas representações da Vênus (Afrodite) substituem a imagem de Maria. Na obra de Botticelli, ‘O Nascimento da Vênus’, possivelmente assistimos ao nascimento de uma nova divindade, ao triunfo da beleza, à apoteose da mulher, Vênus substitui a Virgem Maria.
Nesse sentido, o arcano maior "A Papisa" passou por esse período da História, também, a ser classicamente associado aos aspectos lunares, a todos os atributos inerentes à lua como símbolo de passividade, fertilidade, fecundidade, maternidade, magia, sabedoria, segredo, sombra e luz. As deusas míticas lunares Ishtar (Babilônia e Assíria), Isis (Egito) e Astarte (Fenícia), dentre outras, correspondem, em alguns Tarôs,  a esse arcano maior e a sua evidente representação de sagração do feminino, representado pela simbologia da Deusa ou da Grande Mãe. 
Existem algumas conexões e inferências históricas bem conhecidas dos tarólogos sobre a simbólica e as concepções iconográficas desse arcano maior, como por exemplo, a de que ele poderia representar a lendária papisa Joana, possivelmente uma mulher de origem alemã, que (tra)vestida de
 
A Papisa no Cagliostro Tarot e no Papus Tarot
Bruno Sigon (1912) e Gérard Encause (1865-1919)
monge conseguiu conviver com os clérigos e ser eleita Papa após a morte de Leão IV, que ocorrera em 17 de julho de 855. Na História faltam evidências importantes que possam garantir a fidedignidade desse fato.
Outra versão já aproxima a origem desse arcano maior, A Papisa, à família Visconti, do ducado de Milão, na Itália.
Consta que, com chegada à Milão, por volta de 1260, de Guglielma da Boêmia, religiosa, benzendeira e influente pregadora do “princípio feminino” do Espírito Santo, foi-se constituindo uma seita herética na Europa, em Brunate, Província de Como, na Lombardia, Itália, a dos guglielmitas ou a dos “filhos do Espírito Santo”.
Papa Bonifácio VIII (1235-1303)
Afresco de Giotto (Basilica San Giovanni, Roma (Itália)
In www.templaricavalieri.it
 
Conforme destacado por Benedetti (1998), tal seita buscava reforçar a crença de que Guglielma era a verdadeira encarnação do Espírito Santo na terra, apanágio, esse, que ela buscava ocultar enquanto esteve viva, com tamanha veemência, por temer a intolerância e represálias da Igreja. Mesmo pregando de forma discreta, conseguiu reunir um número significativo de devotos. Faleceu em 1281, aos 60 anos de idade.
Afirma-se, que a orientação da seita esteve voltada profundamente à divulgação da doutrina da divindade de Guglielma. Dedicou-se, sobremaneira, ao alcance do objetivo de eleição, nos domínios da Igreja católica,  de uma “papa/papisa” mulher, a qual deveria guiar e orientar os discípulos e devotos guglielmitas pelos caminhos de encontro com o Espírito Santo, salvando pagãos, judeus e sarracenos das doutrinas corruptas daqueles por eles denominados de “falsos cristãos”, os quais seriam liderados pelo Papa Bonifácio VIII.
Segundo Cawthorne (2002), quem teria sido designada por Guglielma, antes mesmo de ela
falecer, para que no Pentecostes de 1300 viesse a materializar tal intento, fora Maifreda de Pirovani, abadessa da Congregação Umiliata de Biassono, de Milão e prima de Matteo Visconti.
Maifreda tinha o apoio de um dos principais discípulos da seita guglielmita, Andrea Saramita, a quem Guglielma, quando em vida, chamava de “filho primogênito”.
Nesse contexto, infere-se, que um dos objetivos da seita guglielmita era o de constituir um novo colégio de cardeais com uma representatividade exclusivamente de mulheres. Sabendo dessa tentativa herética de usurpação do poder papal, o Papa Bonifácio VIII, pontífice durante os anos de 1294 a 1303, lançando mão dos mecanismos da Inquisição, ordenou que Maifreda e os seus seguidores fossem executados.
Como consequência de um processo iniciado em julho de 1300, os devotos de Guglielma acusados de heresia pela Igreja Católica foram queimados em plena Praça Vetra, de Milão. Durante a apresentação da sentença, os restos mortais de Guglielma, que já havia falecido há 19 anos, foram profanados e exumados de um túmulo da Abadia de Chiaravalle, sob a ordenação do inquisidor Guido da Cocconato, sendo queimados na fogueira juntamente com os seus seguidores.
Guglielma é considerada Santa, apenas pelos aldeões de Brunate, tendo seu dia comemorado, sempre, no quarto domingo do mês de abril, em festa não considerada oficial pelos clérigos da Santa Madre Igreja. O seu nome não aparece nos Acta Sanctorum, não possuindo, portanto, hagiografia na Igreja Católica.
 
Santa Guglielma abençoa duas figuras
ajoelhadas aos seus pés, uma freira e
um religioso. Há quem os identifique
como Maifreda e Andrea Saramita
Retábulo na Igreja de Sta Andrea
em Brunate (Itália, 1450?) - In www.iubilantes.it
Diante esse fato, algo curioso se evidencia na história de Guglielma. Após uns 150 anos, mais ou menos, da execução dos guglielmitas em Milão, um de seus seguidores, de forma anônima, mandou que pintassem a imagem de Guglielma abençoando dois devotos (talvez Maifreda e Andrea Saramita) e a expôs no retábulo da Igreja de Santo Andrea, em Brunate. Em 1745 a pintura foi enquadrada em mármore esculpido, sendo ainda venerada no local.
Matteo Visconti (1250-1322)
Senhor de Milão
In www.summagallicana.it
 
Por meio desse capítulo importante da historiografia das heresias, pode-se observar o anseio pela edificação de uma Igreja do feminino. Nesse contexto, observa-se claramente que a representação simbólica do lado feminino de Deus incomoda ou incomodou, fazendo o catolicismo deparar-se, ainda hoje, com a própria tradução visível e histórica de uma Igreja-Instituição, mesmo à época sonhada, mas que fora, realmente, chefiada por mulheres.
Percorrendo em leitura pela historiografia italiana, observa-se que em pouco mais de 10 anos após a execução dos guglielmitas, por volta de 1311, duas facções políticas tiveram bastante influência em solo milanês, os guelfos (partidários dos papas) e os gibelinos (partidários do vicario imperial).
Esses grupos, após a morte de Henrique V, do Sacro Império Romano-Germânico (1125), que falecera sem deixar herdeiros diretos, batalhavam para dirigir os destinos de diversas regiões da Itália. Em Milão, a vitória atribuiu-se, em muitas batalhas contra os guelfos da família della Torre, aos gibelinos,  facção declaradamente antipapal,  liderados pela
família Visconti, tendo Matteo Visconti como um dos seus principais representantes.
Tais fatos ocorreram a mais ou menos uns 150 anos antes do surgimento do Tarô Visconti-Sforza, o qual pode também ter sido publicado pelo ano de 1450,  período que Milão fora conquistada por Francesco Sforza, que era casado com Bianca Maria Visconti, filha de Filippo Maria Visconti, último duque de Milão e descendente dessa família.
Observa-se, na História do Tarô, que o Tarô Visconti-Sforza fora encomendado por essa família, governante de Milão, a fim de representar o seu poder político na região, além de expressar simbolicamente a descendência dos Visconti com Júpiter e Vênus.
Diante tal perspectiva histórica, vale destacar que as antigas famílias dinásticas européias cuidavam por preservarem suas memórias. Como os Visconti eram gibelinos,
 
Francesco Sforza e Bianca Maria Visconti Sforza
Tela de Bonifacio Bembo, 1460
Pinacoteca de Brera, Milão (Itália)
pode-se inferir, por outro lado, que a imagem do trunfo A Papisa, no Tarô encomendado por essa família, pode ter sido, pelo menos em parte, uma representação feminina de um ícone antipapal, ou ainda, uma espécie de homenagem ou alusão à Maifreda.
A Papisa
Tarô Visconti-Sforza
 
De outra forma, observando-se atentamente o domínio do conjunto da obra artística empreendida no arcano maior, A Papisa, do Tarô Visconti-Sforza, e levando em consideração o tempo histórico em que pode ter sido produzido e o fato de o símbolo falar por si mesmo, é possível inferir que o desejo do artista medievo, que pintou essa carta, era o de representar uma espécie de simbólica neoplatônica do sagrado feminino através de uma espécie de simbiose de símbolos, de uma espécie de mescla do que representava para o cristão europeu a imagem da Virgem Maria, trazendo no ventre, Jesus, o filho de Deus, concebido pelo poder do Espírito Santo,  somada ao que representava os símbolos inerentes à gravidez por concepção natural, através do sexo, também tão naturalmente sagrado quanto o emblemático dogma cristão da virgem imaculada.
O que poderia significar então, do ponto de vista simbólico, uma freira ou abadessa grávida? Observando com um olhar técnico a estrutura e a simbólica do Tarô, afirma-se categoricamente que tal fusão simbólica choca-se, significativamente, com o do arcano seguinte, A Imperatriz. Certamente, essa seria mais uma hipótese, adicionada as já mencionadas e as ainda não assinaladas, dos possíveis tipos de representação do feminino para o trunfo, "La Papessa", desse Tarô.
Outros elementos simbólicos são bem destacados na iconografia desse arcano do Tarô Visconti-Sforza. Imageticamente, nesse arcano maior é observado, em um estilo gótico de pintura, o encobrimento, através de ampla e
folgada veste sacerdotal ou hábito religioso, do corpo feminino, que para a Igreja, estava profundamente associado aos prazeres e ao pecado da carne. Ela é representada grávida, não há duvidas! Mostra um olhar sereno e contemplativo, simbolizando a ligação sagrada do gênero humano com o Divino, com o Criador, voltado para a sua esquerda, ou seja, denotando a forte relação da humanidade com o passado ou com uma tradição.
Sobre esse emblema Pratas (2009) destaca que "[...] na Arte Gótica, a principal particularidade foi a procura do realismo na representação dos seres que compunham as obras pintadas, quase sempre tratando de temas religiosos, apresentava personagens de corpos pouco volumosos, cobertos por muita roupa, com o olhar voltado para cima, em direção ao plano celeste".
Nesse tipo de arte, pode-se observar a manifestação da idéia de um espaço sagrado e atemporal, alheio à vida mundana, conseguido com a substituição da luz por fundos pintados ou ornados de dourado. Essas técnicas e conceitos são perceptíveis tanto na pintura mural, quanto no retábulo, assim como em iluminuras.
Sabe-se que, na Idade Média, assim como algumas famílias poderosas italianas, a Igreja de Roma demandou representações artísticas da imagem da Virgem Maria, durante certo período, aos muitos tapeceiros, tecelões, pintores, escultores europeus com o objetivo de
doutrinar fiéis, além do de decorar o interior de suas igrejas.
No caso das famílias nobres, sobretudo, milanesas, encomendavam-se tais obras, ou com fins de decoração de palácios ou, também, de educação religiosa no domínio familiar.
Certamente que, dessa prática de mecenato, tais famílias italianas podem não ter eximido o Tarô, empreendendo-lhe uma finalidade meramente lúdica, mas é possível que, também tenham esboçado-lhe todo um papel de cunho pedagógico, ou ainda, pretenderam conferir-lhe um status de repositório no qual deveria ser resguardado e preservado toda uma memória familiar, histórica e cultural, o que se pode inferir sobre o Visconti-Sforza Tarô.
Toda essa lógica impressa, pelo artista, no arcano maior A Papisa nesse Tarô, faz algum sentido quando nos atentamos para o fato de que no quattrocento grande parte do conhecimento construído e adquirido era elaborada pelos eclesiásticos e poucos eram os que lhes tinham o acesso, já que maioria da população medieva, formada por camponeses, não sabia ler e nem escrever.
Eram eles, os clérigos, os formadores de opiniões, os que moldavam as crenças, os valores e os comportamentos e se utilizavam da arte como um de seus  instrumentos de doutrinação e dominação, utilizando-se, talvez, do Tarô no sentido de se fazer prevalecer determinadas doutrinas por meio não só do uso do artifício da comunicação oral, mas, principalmente da ferramenta visual da imagem que fora ali constituída pelas mãos do artista, divulgando-a como uma das espécies de representação autêntica de heresia, de confronto e refutação aos mais que fundamentados, verdadeiros e sagrados ideais cristãos, fincada em solos europeus desde os tempos dos templários
 
A Virgem amamentando
De Robert Campin
In Städelsches Kunstinstitut,
Frankfurt (Alemanha, 1410)
Rainhas de Paus e de Copas, acima,
Rainhas de Espadas e de Ouros, abaixo.
The Golden Tarot of Renaissance (2004)
G. Beti & Jo Dworkin
 
Além dessas, o Tarô em sua estrutura carrega outras representações do feminino, com suas nuances, encerrando símbolos profundos que tratam de assuntos de ordens prática ou espiritual como "justiça", no maior A Justiça;  "poder, administração e controle",  no maior A Força; "resiliência, esperança e serenidade", no maior A Estrela; "medos, sonhos, fluxos, fases, magia e os mistérios da fêmea", no maior A Lua; e "arte, beleza, maternidade,  proteção e realização e tudo o que envolve o universo feminino", no A Imperatriz.
Nesse âmbito, não somente no "A Imperatriz" foi agregada uma simbólica profunda, intrínseca ao mundo feminino. Além de nos outros arcanos acima citados, nas 4 (quatro) Rainhas que compõem os arcanos menores da corte esse arsenal de significados simbólicos também é evidenciado.
Importante enfatizar, que em alguns Tarôs bem antigos, como o próprio Visconti-Sforza e alguns do século XIX, como o Vacchetta Tarô, de 1893, o arcano maior "A Lua" é representado por imagens de mulheres. Diferentemente desses, elas podem ser retratadas dividindo o conjunto iconográfico da carta com alguma figura masculina, como nos Tarôs de Carlos VI ou Grigonneur,  de 1470(?) aonde é observado um casal de astrólogos ou astrônomos  e, também, no  1JJ, de 1831/1838, aonde se vê um trovador e uma donzela.
No que se refere aos arcanos maiores A Papisa e A Imperatriz, as muitas representações simbólicas do feminino que lhes são destacadas, através das mudanças que são comuns ao passar do tempo, podem trazer inúmeros diferenciais iconográficos sob a ótica dos mais diversos autores dos "inúmeros" tipos de Tarô existentes.
Alguns desses novos olhares cuidam de expressar tais símbolos originariamente clássicos através de imagens e aspectos alegóricos pertencentes aos mitos, às tradições bíblicas ou somados a outros sistemas simbólicos, por exemplo, dotando o Tarô de uma iconografia e
de um significado surreais. Nesse sentido, “[...] o imaginário, enquanto mobilizador e evocador de imagens utiliza o simbólico para exprimir-se e existir e, por sua vez, o simbólico pressupõe a capacidade imaginária.” (LAPLATINE & TRINDADE, 1996).
Por outro lado, tais possibilidades, se mal assimiladas, podem resultar na deformação da simbologia antiga e tradicional contida nas imagéticas arcânicas e, consequentemente, em seus atributos ou significados, fenômeno esse já bem percebido a partir da consolidação do conceito de tarô esotérico no século XIX, com o ocultismo moderno.
No que diz respeito às representações do feminino na Idade Média, os artistas, de acordo com os valores sociais da época, os ditames da Igreja e influenciados por seus dogmas, retratavam a mulher em suas obras, por exemplo, associando-a ao pecado, ao mal, geralmente através da imagem de Eva colocada junto a da serpente, mas, dicotomicamente,  a imagem da Virgem Imaculada era outro tipo de representação do feminino enaltecida e divinizada nas obras de arte, com o intuito simbólico de talvez redimir os pecados da primeira.
O culto à Virgem Maria, em pleno século XII surge como uma espécie de resgate do feminino, embora com claros limites, exatamente pela mesma via que tratou de extingui-lo, quando do advento do Cristianismo em solo romano. Nesse contexto, as representações clássicas do feminino no Tarô guardam por si mesmas toda umalinguagem simbólica relacionada a alguns personagens e às várias  e  históricas  épocas;   hermética,  por  si
 
A Lua nos tarôs Visconti-Sforza (1435), Giovanni Vacchetta (1893), acima;
Carlos VI (1470?) e
Georg Rauch (1831-38), abaixo.
mesma, que anseiam por ser reveladas, através de um simples olhar sobre o seu belo cabedal artístico, estético e imageticamente rico de significações sublimares, as quais penetram nos sentidos humanos, preenchendo-os de denotações e conotações que sugerem expressões da vida, das pessoas e de suas próprias histórias no decorrer do tempo.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana: da Antiguidade a Duccio. São Paulo: Cosac Naify, 2004. V.1.
BENEDETTI, Marina. Io non sono Dio: Guglielma di Milano e i Figli dello Spirito Santo. Milano: Edizioni Biblioteca Francescana, 1998.
BLAVATSKY, Helena Petrovna. Isis sem véu: teologia. São Paulo: Pensamento, 2008. V. 3.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo:  Cultrix/Pensamento, 1988.
CAWTHORNE, Nigel. A vida sexual dos papas. São Paulo: Ediouro, 2002.
ECO, Humberto. Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mario Sabino Filho. Rio de Janeiro: Record, 2010.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
ESCOLÁSTICA, Maria. O gozo feminino. São Paulo: Iluminuras, 1995.
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fevereiro.11
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