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18 de dezembro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


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Física quântica, ciência moderna, misticismo
e a crise do mundo moderno
  Sérgio Cortizo  
Entrevista realizada em 12.01.2010
por Roberta Melega Cortizo
 
Qual foi a real importância da física quântica para os homens? E da Relatividade?
Acho que a importância real é menor do que normalmente se acredita. Muito do progresso técnico observado ao longo do séc. XX foi devido a descobertas científicas básicas do século anterior. Por exemplo, o enorme desenvolvimento das comunicações (rádio, TV, etc.) se deve principalmente às descobertas no campo do eletromagnetismo da segunda metade do séc. XIX. A Relatividade fez uma síntese teórica importante desses avanços, mas certamente não foi decisiva para seus desdobramentos práticos, tecnológicos: eles aconteceriam com ou sem ela.
Em linhas bem gerais, a Ciência opera indutivamente: parte da observação empírica de fenômenos naturais e busca explicações progressivamente mais articuladas para tais observações. Neste processo, um primeiro passo costuma ser a formulação de uma “fenomenologia”, isto é, uma organização sistemática dos fatos observados acompanhada da criação de conceitos que auxiliem nessa tarefa, bem como da busca de relações entre estes elementos. Nesse primeiro momento, não temos propriamente “explicações”, mas apenas “regularidades” observadas empiricamente. Em um segundo passo do processo temos a criação de um “teoria” no sentido mais estrito do termo, que procura relacionar mais profundamente os elementos da fenomenologia entre si e também como outros campos científicos.
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A Relatividade pode ser considerada a teorização final (segundo passo acima) das importantes pesquisas sobre os fenômenos eletromagnéticos que foram realizadas ao longo de todo o séc. XIX.
Comparativamente, ao meu ver, a Mecânica Quântica é ela própria apenas uma fenomenologia: uma sistematização inicial dos fenômenos moleculares e subatômicos estudados desde o início do séc. XX. Ela não é realmente uma “teoria”: seu aparato conceitual e matemático é muito mais o resultado de um mero ajuste de equações aos dados quantitativos observados empiricamente do que a expressão de uma síntese conceitual importante. Neste sentido, a Mecânica Quântica é uma teoria incompleta.
Mas por que a Mecânica Quântica permaneceu assim incompleta, como uma fenomenologia, ao invés de evoluir para uma teoria no sentido mais pleno do termo?
Por causa de um problema científico específico, que nunca foi resolvido: a Mecânica Quântica considera três grandezas da Física como constantes fundamentais da natureza, independentes entre si: a constante de Planck, a carga elétrica elementar e a velocidade da luz no vácuo. Entretanto, uma combinação algébrica simples entre elas resulta em um número conhecido como “constante de estrutura fina”, que é adimensional, isto é, não possui unidade de medida (como “metro” ou “segundo”). Tal fato indica que as três grandezas acima não são constantes fundamentais independentes entre si, e que uma delas pode ser calculada a partir das outras duas.
Várias gerações de físicos tentaram realizar este cálculo (o problema foi colocado em 1905), mas até hoje ninguém nunca teve êxito. Na minha opinião, enquanto esse problema não for solucionado a Mecânica Quântica permanecerá essencialmente incompleta, pois o cálculo depende exatamente do mesmo avanço conceitual no nosso entendimento do mundo microscópico.
Quais foram os desdobramentos dessas duas teorias para o mundo de hoje?
Ocorre muitas vezes que os desdobramentos tecnológicos das descobertas científicas decorrem mais da fenomenologia inicial do que da teorização posterior. Este me parece ser o caso tanto da Relatividade quanto da Mecânica Quântica. Como já dissemos, a Relatividade em si não teve tantos desdobramentos quanto a Teoria Eletromagnética da qual ela é uma continuação histórica, e a Mecânica Quântica, apesar de ser apenas uma “fenomenologia”, foi sem dúvida útil no desenvolvimento de novas tecnologias, como, por exemplo, os semicondutores.
Há contudo, uma diferença importante entre estes dois casos: como o “grau de teorização” da Relatividade é muito maior do que da Mecânica Quântica, os conceitos da primeira são muito mais sólidos ou robustos do que da segunda. É muito diferente uma idéia provir de um corpo de conhecimento conceitual articulado ou da mera aplicação “cega” de regularidades observadas empiricamente, mas desprovidas de “explicação”.
Einstein  
Albert Einstein
1879-1955
Teoria da Relatividade
  Planck  
Max Planck
1858-1947
Teoria Quântica
Por exemplo, na minha opinião, a idéia de “constância da velocidade da luz em todos os referenciais” (Relatividade) tem muito mais embasamento científico do que os “saltos quânticos”. A primeira é um elemento necessário para a coerência global de uma teoria que, como um todo, explica os fatos observados. Já os “saltos quânticos” são apenas um “remendo conceitual” para compatibilizar o processo empírico de medida com as equações inferidas dos dados observados. Não há “teoria” nenhuma por detrás dos “saltos quânticos”. Dar um nome para o que não entendemos pode nos deixar mais confortáveis, mas não chega a ser uma explicação
Tem valor trazer a teoria quântica para as concepções místicas?
Depende de como isso é feito, e com qual propósito. Acho que procurar paralelos entre campos de conhecimento distintos é uma boa idéia, pois podemos eventualmente obter uma síntese interessante, que levaria a uma visão mais abrangente do mundo.
O problema é que esta não é a abordagem de muitas das incorporações recentes de elementos da Mecânica Quântica ao corpo de doutrinas místicas tradicionais. O que vemos, com mais freqüência, é uma tentativa de justificar o conhecimento tradicional por meio de “explicações científicas” baseadas na Mecânica Quântica. O resultado, em geral, é lamentável.
Não por acaso, a Mecânica Quântica é vista como a área preferencial da Física para buscar uma fundamentação científica ou uma ponte conceitual entre a doutrina mística e a ciência moderna: como ela é uma teoria incompleta, desprovida de uma estrutura sólida, cheia de lacunas e conceitos mal definidos, fica mais fácil enxergar relações que não existem, e fazer associações vagas que não acrescentam nada ao conhecimento tradicional, e nem tampouco ao científico.
Neste contexto, um “salto quântico” pode significar qualquer coisa que você queira imaginar, e pode “explicar” ou “justificar” absolutamente tudo.
Qual o papel da Ciência na crise do mundo moderno?
Acho que vivemos em uma sociedade “cientificista”, que espera da ciência muito mais do que ela pode nos dar, pelo menos no seu estágio atual de desenvolvimento. Os estados nacionais foram separados das religiões apenas para a Ciência ocupar o mesmo espaço como “o conhecimento oficial”, respaldado pelo poder público.
Não se trata, é claro, de negar os inúmeros benefícios que a Ciência trouxe para a humanidade; mas uma visão sábia, ponderada e imparcial deveria registrar também seus fracassos e os problemas que ela criou, e isso raramente é feito.
Consideremos, por exemplo, o problema das mudanças climáticas, que ameaçam gravemente toda a humanidade. A causa principal do aquecimento global é a queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão mineral).  Foi  o  desenvolvimento  técnico-científico
que possibilitou a exploração econômica dessas fontes de energia, que por sua vez tornou possível o processo de industrialização a partir do séc. XIX. Mas só a partir da segunda metade do séc. XX a Ciência começou a alertar para o perigo que a queima maciça de combustíveis fósseis representa para a estabilidade climática do planeta. Assim, a Ciência tem alguma responsabilidade pela situação dramática em que nos encontramos.
Hoje, a comunidade científica alerta para a gravidade e urgência do problema, mas não apresenta uma solução tecnológica satisfatória, que seria uma fonte de energia primária limpa e mais barata do que os combustíveis fósseis.
 
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Na segunda metade do séc. XX, muito investimento e esforço de pesquisa foram dedicados ao controle da energia proveniente da fusão nuclear para produção de energia elétrica. As reações de fusão nuclear geram a luz e o calor emitidos pelo Sol, e são muito mais limpas do que a fissão nuclear, utilizada em todos os reatores hoje em funcionamento. No início desses programas de pesquisa, na década de 1960, esperava-se que a tecnologia de fusão nuclear estaria disponível comercialmente antes do final do séc. XX. Após fracassos e adiamentos sucessivos, hoje ela não é esperada para antes de 2050: tarde demais para resolver o problema climático.
Por que a Ciência não conseguiu controlar a fusão nuclear para a produção de energia elétrica?
Não foi por falta de investimentos: nas crises do petróleo da década de 1970, muito dinheiro foi aplicado nos programas de pesquisa que, no entanto, não obtiveram o sucesso esperado. A desproporção entre o dinheiro investido e os resultados concretos foi tão grande que o governo dos EUA cortou drasticamente as verbas em meados da década de 1990. Hoje todos os países apostam na cooperação internacional, ao contrário da época de grandes verbas, onde prevalecia a competição entre os centros de pesquisa. Atualmente, um grande projeto internacional, conhecido pela sigla ITER, tem por objetivo construir um reator de fusão viável economicamente até 2050, mas a humanidade não pode continuar queimando combustíveis fósseis no mesmo ritmo até lá: o clima do planeta seria totalmente desestabilizado.
Voltando à pergunta, eu acredito que a causa real do fracasso da Ciência no controle da fusão nuclear para fins pacíficos foi a deficiência do nosso conhecimento sobre o mundo microfísico. Se a constante de estrutura fina tivesse sido calculada e a Mecânica Quântica houvesse evoluído para uma teoria no sentido pleno do termo, provavelmente teríamos o conhecimento básico e as ferramentas necessárias para superar as dificuldades técnicas que hoje impedem o sucesso no controle da fusão nuclear para fins pacíficos.
Mas devemos ser realistas: não há mais tempo para esperar por este desenvolvimento da Mecânica Quântica, e nem podemos mais aguardar que “novas tecnologias” resolvam o problema cada vez mais grave e urgente das mudanças climáticas. A dura verdade é que a Ciência fracassou: os combustíveis fósseis ainda são a fonte mais barata de energia primária e continuarão a ser por vários anos. Não nos resta outra alternativa além das difíceis negociações internacionais para limitar seu uso em escala mundial.
março.10
O autor:
Sérgio Cortizo é físico e doutor em filosofia pela USP, onde foi professor por 12 anos.
Hoje trabalha na Secretaria de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente.
Conheça seu site Mudanças Climáticas e Energia: www.sergio.cortizo.nom.br
Roberta Mélega Cortizo, Jornalista e Mestra em Antropologia pela USP,
trabalha no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
 
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