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20 de abril de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


  ARTES / Literatura < voltar  
O Louco nos poemas e nas canções
  Bete Torii  
 
 
Der Narr, o Louco
Der Narr, o Louco
      O arcano sem número, O Louco, já mereceu ótimos estudos neste site, e entre os mais interessantes estão o texto De Mago e Louco todo mundo tem um pouco..., de João Cláudio Fontes, e O Arcano 0 ou 22 – História e Símbolos, de Cid Marcus. Além desses, há a belíssima interpretação de Ouspensky, que sugere que os 21 Arcanos Maiores constituam um triângulo que é Deus (a Trindade) ou o mundo numênico ou numeral; os Arcanos Menores constituam um quadrado (os quatro elementos) que é o mundo visível, físico ou fenomênico; e o Zero (o Louco) seja o ponto que é a alma do homem, na qual ambos os mundos citados estão refletidos.
    Aqui, a idéia é apenas compilar algumas menções ao Louco que aparecem na literatura, poesia e canções.
Loucos “modernos”
    A ida, a busca, o lado luminoso
    Nos poemas e canções modernos ou contemporâneos, a figura do louco é com frequencia associada à do id-iota: o rebelado ou liberto, aquele que não se prende a regras e convenções do mundo nem se escraviza à opinião dos outros. É uma condição em que há uma perda (consentida e mesmo desejada) que, afinal, significa um ganho: quem “perde” a razão se liberta do seu jugo e pode viver uma consciência mais elevada. Ou, quem perde seu status e suas máscaras, e ganha o rótulo de “louco”, é apenas aquele que escapou da hipnose em que vivem os que lhe puseram o rótulo.
O Louco  
Gibran Kahlil Gibran
 
 
Perguntais-me como me tornei louco.
Aconteceu assim: um dia, muito tempo antes
de muitos deuses terem nascido,
despertei de um sono profundo e notei que todas
as minhas máscaras tinham sido roubadas
- as sete máscaras que eu havia 
confeccionado e usado em sete vidas  –
e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente, gritando:
"Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"

Homens e mulheres riram de mim e alguns
correram para casa, com medo de mim.

E quando cheguei à praça do mercado,
um garoto trepado no telhado de uma casa gritou: 
"É um louco!".

Olhei para cima, pra vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua.

Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua,
e minha alma inflamou-se de amor pelo sol,
e não desejei mais minhas máscaras.

E, como num  transe, gritei: 
"Benditos, bendito os ladrões que 
roubaram minhas máscaras!"

Assim me tornei louco.

E encontrei tanto liberdade 
como segurança em minha loucura: 
a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele desigual que nos 
compreende escraviza alguma coisa em nós.
 
 
Kalil Gibran
Kahlil Gibran
www.lebanon.com
 
Balada do Louco  
Arnaldo Baptista e Rita Lee
 
 
 
O Louco no Roots of Asia Tarot
O Louco
Roots of Asia Tarot
 
Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz

Se eles são bonitos, sou Alain Delon
Se eles são famosos, sou Napoleão

Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu

Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu (no ar)

Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu

Sim, sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz

Mas louco é quem me diz
E não é feliz. Eu sou feliz
 
Cântico negro  
José Régio
 
 
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
 
José Régio,
pseudônimo literário de
José Maria dos Reis Pereira,
nasceu em Vila do Conde em 1901.
Buffy Slayer's Tarot
O Louco
Buffy Slayer's Tarot
 
 
    A volta, o lamento, o lado sombrio
    Mas existe também, é claro, o Louco que está “perdido” ou abandonado nas garras do sofrimento e do remorso. Normalmente é o louco de amor, o que encontrou (ou desencontrou) um “amor de perdição” – e, em lugar de ganhar a si mesmo e se libertar, perdeu-se de si e já não encontra o caminho.
 
 
O Louco, por Alex Stewart
O Louco por Alex Stewart
www.foolsense.co.uk
 
Só Louco  
Dorival Caymmi
 
Só louco amou como eu amei
Só louco quis o bem que eu quis
Ah, insensato coração
Por que me fizeste sofrer?
Por que de amor para entender
É preciso amar, por que?
João e Maria  
Sivuca e Chico Buarque
 
Pra lá desse quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim
 
 
 
Estranha Loucura  
Alcione
(M.Sullivan/Paulo Massadas)
 
Minha estranha loucura
é tentar te entender e não ser entendida
É ficar com você
Procurando fazer parte da tua vida
Minha estranha loucura
É tentar desculpar o que não tem desculpa
É fazer dos teus erros
Num motivo qualquer a razão da minha culpa
Remorso  
Lupicínio Rodrigues
 
E hoje, o remorso que trago comigo,
Transformou-se em meu inimigo,
E procura vingar-se em meu ser,
Ando a vagar qual um louco morcego,
Que procura fugir do sossego,
Pra nas trevas do mundo viver !
 
 
O Louco no Golden Tarot of Klimt
O Louco
Golden Tarot of Klimt
 
 
Loucos “antigos”
    A figura d’O Louco, tal como aparece no tarô clássico, guarda relação com os peregrinos ou andarilhos da Idade Média – e é fascinante ver como esse paralelo entre louco e peregrino é traçado também em textos de estudiosos que estão longe de pensar no tarô e tampouco se restringem à iconografia da época. Ou seja: no caso desse Arcano fica claro que ele não foi desenhado apenas como um símbolo, mas como retrato de uma condição humana que era reconhecida e vivida por muitos. Condição possivelmente vista como tão inerentemente humana, mas ao mesmo tempo tão diferenciada e fora da “ordem social” estabelecida, que a carta não recebeu número.
    O Caminho de Santiago
Trecho de “Rumos e rumores”, de Vera Follain de Figueiredo, in http://www.geocities.com/ail_br/rumoserumores.htm
 
    O conto “O Caminho de Santiago”, de Alejo Carpentier, sintetiza a atmosfera da Europa no período de transição da Idade Média para a Idade Moderna. A religiosidade medieval em ruínas, a miséria, as doenças, a dissolução dos valores da sociedade feudal teocrática, a crescente repressão exercida pela Igreja Católica, empenhada em manter o seu domínio, a mistura de raças, culturas e credos no solo europeu, como conseqüência da atividade comercial, das guerras e das peregrinações religiosas. Encena, sobretudo, o fascínio das viagens, ou melhor, o fascínio exercido pelas narrativas de viagem, verdadeiras ou imaginárias. [Seus dois personagens, dois viajantes, se chamam Juan.] Juan Indiano é a outra face de Juan Romeiro, a face que aponta para o desgaste do maravilhoso cristão, disciplinado, regulamentado no milagre, e para a força crescente do maravilhoso propriamente dito, que não se restringe ao arbítrio de um só Deus, contando com inumeráveis forças sobrenaturais e com a sedução do imprevisível.
 
O Peregrino
O Peregrino
www.conservativefriend.org
      O que mais caracterizou aquele momento, entretanto, foi a tensão que se estabeleceu entre esses dois tipos de narrativa: a que tem a bíblia como referência para tudo e a que desliza para um universo povoado de monstros, seres estranhos, ilhas de pérolas, montanhas de ouro: fenômenos não catalogados nos textos cristãos. As figuras do peregrino e do viajante se sobrepõem, se trocam, como acontece com Juan Romeiro e Juan Indiano: é o homem dividido entre os referenciais do passado e o apelo do novo. Quando prevalece o espírito do peregrino a significação da viagem não ultrapassa a identidade do mesmo.
    O peregrino perseguia aquilo que ele já sabia, a confirmação absolutória de um Absoluto desde sempre creditado, ele nunca se desprendia das fronteiras de uma verdade que se exauria em exigir a sua própria confirmação, ainda que, e mesmo principalmente, através de milagreiras penas sequiosas de redenção. Os tortuosos caminhos ratificavam a identidade do princípio e do fim: do mesmo se ia ao mesmo, e tudo isso mais nada tinha a ver com o mundo.
    Quando prevalece o impulso para a grande viagem, fala mais alto a aventura de se lançar ao desconhecido, de conferir os prodígios que povoam as narrativas, ainda que, muitas vezes, o impacto causado pelo novo leve o viajante a tentar enquadrá-lo nos parâmetros do já conhecido. Seja como for, viajante e peregrino são frutos da mesma insatisfação e cada qual, a seu jeito, busca uma saída para os males que assolam o contexto europeu da época. Daí porque, Erasmo, no Elogio da Loucura, escrito em 1509, considera, tanto um como outro, insanos. Para ele, são loucos os viajantes que, por um lucro magro e duvidoso, correm através dos mares e dos ventos colocando em risco uma existência que dinheiro nenhum poderia restituir. Mas também são loucos os peregrinos, que largam "a casa, mulher e filhos para ir a Jerusalém, a Roma, ou então a Santiago onde nada os chama".
    . . .
    Erasmo olha o mundo com distância e ironia, a partir da certeza de que a única verdade está na Sabedoria divina e de que a única busca válida é a busca interior, voltada para o encontro com Deus. Seu livro é um longo monólogo no qual a Loucura, diante de um auditório repleto, faz o elogio de si mesma. A loucura a que o autor se refere é aquela que contamina a razão, que se encontra no âmago da própria razão, disseminando-se de tal forma que ninguém dela escapa, nem os sábios, nem o clero, nem Cristo, já que ele se revestiu da natureza humana. Torna-se, assim, impossível traçar limites entre sanidade e insanidade. A loucura subjaz a tudo que é humano, é inerente ao homem, à sua presunção, à sua vaidade.
 
A Nau dos Insensatos
"A nau dos insensatos"
Gravura medieval representando loucos e peregrinos no mesmo barco
 
    A dissolução dos limites entre loucura e razão está em consonância com um mundo que se encontra no limiar entre os valores medievais já em decadência e os valores modernos em gestação. Não é, portanto, à-toa que o imaginário do período vai estar marcado pela presença da loucura e que, como nos fala Bakhtin, folguedos como a "festa dos loucos", celebrada nas ruas e tavernas, ganham tamanha importância que acabam por ser proibidos nos fins da Idade Média. Por outro lado, Foucault nos chama a atenção para a associação entre o mar e a loucura, manifesta na existência do estranho hábito, cultivado no século XV, de se escorraçar os loucos das cidades, confiando-os aos marinheiros, mercadores e peregrinos. Assim surgem as chamadas "naus dos loucos", navios que carregavam insanos em busca da razão.
    Relato de um Peregrino Russo
Introdução a "Relatos de Um Peregrino Russo",
de Cristina Campo em http://www.agencia.ecclesia.pt
 
    "Pela graça de Deus sou homem e cristão, por acções grande pecador, e por vocação peregrino da espécie mais mísera, errante de lugar em lugar. Os meus bens terrestres são um alforge ao ombro com algum pão seco e, no bolso interior da blusa, a Bíblia Sagrada. Nada mais."
    Este início, entre os mais encantantórios da literatura de todos os países – comparável ao do Hamlet ou da História do carregador de Bagdad – inaugura ao mesmo tempo um grande tratado espiritual, um romance picaresco, um brilhante poema russo e um conto de fadas clássico.
    No misterioso texto anónimo transcrito no Athos pelo abade Paissy do mosteiro de São Miguel Arcanjo dos Cheremissos perto de Kazan por volta de 1860, por uma vez o conto se mostra sem máscara, ou seja, mostra o que todos os grandes contos são de maneira encoberta: uma procura do Reino dos Céus, a perseguição de uma arcana palavra, pela qual desertamos de repente da terra amada e de todos os bens, e nos fazemos exactamente peregrinos e mendigos, loucos bem-aventurados de coração em chamas dos quais o mundo inteiro faz troça e que o mundo «que está por trás do verdadeiro» socorre e guia com sinais e portentos maravilhosos.
abril.09
Contato com a autora
Bete Torii - btorii@uol.com.br
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