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21 de dezembro de 2024

Responsável: Constantino K. Riemma


As Cartas
Helena Luiz
Por três vezes pensou em tocar a campainha pela segunda vez. Primeiro, a mão a meio do caminho, mudou de idéia e direção, levou-a à nuca, abaixando a cabeça e levantando os olhos pra espiar disfarçadamente o olho-mágico. Trocou de pé, enfiou as mãos nos bolsos, e tirou.
Levantou de novo a mão direita, mas dessa vez achou melhor levá-la ao bolso da camisa, de onde tirou o envelope dobrado. Desdobrou e leu com toda a atenção, como se pela primeira vez, o destinatário e o remetente. Dobrou de novo, meticulosamente, e devolveu ao bolso.
Porte Ouverte
Foto in www.journal-lapprenti.fr
 
De repente, prendeu a respiração, encarou a porta com valentia e apertou com força o botão da campainha. Soltou o ar, e mal tinha terminado de esvaziar o pulmão quando a porta se abriu.
Não foi virada nenhuma chave. A porta não tinha estado trancada, ele pensou, mesmo apesar de todo o nervosismo, ou para desviar o pensamento dele.
— “Oi!” – O cabelo preto, molhado e solto, encharcava os ombros do vestido. – “Entra. Tudo bem? Tive medo que você chegasse enquanto eu estava no banho. Eu podia não ouvir a campainha. Eu sempre tomo banho ouvindo música, e ponho bem alto por causa daquele barulho do chuveiro.”
Ela falava aos borbotões e parecia não precisar de respostas. Ainda bem.
— “Tira o sapato. Quer lavar as mãos? Vai se ajeitando enquanto eu pego as coisas lá dentro.” Ela já estava lá dentro quando terminou a frase.
E ele ficou ali, parado, de pé a um passo da porta. O passo que tinha dado para entrar.
Olhou em volta procurando um lugar onde pudesse sentar para tirar os sapatos (de verniz preto) como ela tinha mandado. Devia ser obrigatório, talvez. Olhou mas não encontrou. Não havia na sala qualquer coisa sequer parecida com cadeira, poltrona ou sofá. Só tapetes e almofadas e uma parafernália de enfeites e livros e discos e coisas que ele nem conhecia, mas tudo no chão. Ia ter de se ajoelhar.
Apoiou-se no joelho esquerdo e tirou o sapato do pé direito. Disfarçadamente deu uma cheiradinha no ar, e tranqüilizou-se. Pensou e decidiu que não era necessário tirar a meia. Trocou o joelho de apoio e estava terminando de tirar o sapato esquerdo quando ela voltou para a sala carregando um monte de coisas e, naturalmente, falando.
— “Ah, você ainda está aí? Também, eu não disse onde era o banheiro. Primeira à direita, no corredor. Pode deixa os sapatos aí mesmo.”
Chegando ao tapete jogou os chinelos e ajoelhou-se num movimento só, como se fosse um passo de balé.
Ele foi lavar as mãos. O sabonete era verde e não tinha cheiro nem fazia espuma. O cheiro era do incenso que queimava. A toalha era bordada e tinha biquinho de crochê. O espelho estava ainda meio embaçado do calor do banho dela. Ficou em dúvida se devia ou não aproveitar para mijar, mas acabou por só lavar as mãos, mesmo.
Na sala, ela estava concentrada nas cartas, embaralhando com cuidado. Começou logo a falar, e ele tentou encontrar uma posição cômoda no chão duro.
— “A minha carta chegou quando? Pelas minhas contas devia chegar anteontem, mas com esse correio a gente nunca sabe. Ainda bem que chegou a tempo, afinal. Claro que poderia ter marcado a hora por telefone, se tivesse o número.”
Ele abriu a boca pela primeira vez:
— “Eu prefiro cartas.”
março.11
Contato com a autora:
Helena Luiz - mh.luiz@bol.com.br
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