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O Truco e a Cerveja |
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Naquele tempo as coisas eram diferentes. Não melhores necessariamente, mas diferentes. Mais calmas, porventura mais ingênuas. |
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Quando eu nasci, nasceu também um menino na casa do alfaiate em frente. E, logo ao lado morava Dona Regina Parteira, italiana de forte sotaque, a mais antiga e famosa da cidade. |
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Pinhal - a Praça da Independência e a Igreja Matriz do Espírito Santo do Pinhal |
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Como meu irmão, seis anos mais velho, chamava-se Marcos, e o primogênito do alfaiate, também filho único até então, era Márcio, que seria também o meu nome, minha mãe ficou curiosa pra saber o nome do recém-nascido. |
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Dona Regina, porém, respondeu: "Tuto quá". Minha mãe insistia na pergunta, e a resposta, lacônica e sempre a mesma: "Tuto quá". |
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Mas que diabos seria tuto quá?! |
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Só dias depois, através de outra fonte, é claro, provavelmente a própria parturiente, Dona Ida ficou sabendo que era Marcos. Daí o tuto quá. Márcio e Marcos lá, Marcos e Márcio em casa. |
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Pois é, as coisas eram assim, nada de maternidades, automóveis, televisão, janelas fechadas, luzes apagadas. |
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Parteiras, cadeiras na calçada, rádio na janela para O direito de nascer, jogo de truco, os berros dos jogadores vindo lá de dentro, no alfaiate ou no sapateiro vizinho. Cada dia alternava-se o local. |
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As ruas eram uma festa à noite. Pelo menos a minha rua, a Marquês do Herval, muito mais conhecida, porém, como "Rua dos Turco", assim mesmo, sem o s. Com as cadeiras e rádios, a gárrula algazarra das crianças, pique, roda, chicote-queimado, mãe-da-rua, brigas ocasionais. E os gritos do truco, dando sustos na gente. |
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O jogo de cartas para o lazer dos homens vem de longe... |
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Tela do artista francês Paul Cézanne: Les Joueurs de cartes, 1892-1893 |
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Ah, o truco!, que conheci mesmo antes de começar a andar. E muito antes de saber que trucar de zápete e sete copas é estar com tudo e não estar prosa. |
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Manilha velha. |
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Minha mãe contava que quando era criança, o jogo era sempre na casa do meu avô, não havia revezamento como no meu tempo, pelo simples fato de que ele era viúvo, e os demais, toda a turcaiada da rua, sentiam-se muito mais à vontade sem mulher a reclamar do barulho e dos berros, das guimbas e cinza na toalha e no chão, o xixi pra fora e sem erguer a tábua, o jogo até tarde impedindo o sono sagrado das crianças. |
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Nessas noitadas, dizia ela, o destaque era sempre o João Pedro, avô da Dona Lorís, a professorinha que me ensinou o bê-á-bá, como diria Ataulfo Alves, e que morreu com 101 anos. |
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João Pedro, avô de uma mulher de cem anos, inevitavelmente morreu antes de eu nascer. Meu avô, por exemplo, tinha 80 quando Dona Regina me trouxe ao mundo. |
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No entanto, se Jacó Jabur não tinha esposa, tinha uma empregada antiga e fiel, que cuidava da casa, das roupas, da cozinha e... das cinco crianças. |
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– Ou sai o jogo – intimou ela –, ou saio eu. |
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O jogo saiu e foi pra outra casa, talvez mesmo a do João Pedro, pouco acima, na calçada em frente, a calçada do alfaiate, da parteira e do sapateiro. |
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Com isso, houve na casa do meu avô um ganho adicional, econômico. É que o João Pedro, segundo Dona Ida, costumava quebrar a mesa quase toda noite. |
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Por favor, não confundam com quebrar a banca, pois no caso dele era literal, e não se tratava de sorte ou habilidade, mas de força, energia e paixão. As mesas, embora de madeira de lei, não resistiam aos tapas que ele lhes dava, ao berros, trucando ou repicando o truco dos outros. TRÊS! SEIS!... |
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Pinhal : trecho da Rua Cel. Joaquim Vergueiro em 1930 |
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Cartão postal do fotógrafo Antunes, disponível em www.sampahistorica.wordpress.com |
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Anos e anos depois, quando tudo ficara muito pra trás, o truco, a alegria barulhenta das crianças, as calçadas cheias de gente, a Rua dos Turco, as bravatas do João Pedro, eis que o truco surge de novo na minha vida, como uma dádiva inesperada. |
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Estávamos num hotel, desses enormes, afastados da cidade, com piscinas, quadras, saunas, academias, campos, bosques, sempre inúteis pra quem está a trabalho, num daqueles cursos em regime de seminário, a semana toda, como concentração de time de futebol. |
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– Você sabe jogar truco? |
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Três caras faziam a pergunta, e em questão de segundos estávamos jogando. Ou melhor, estávamos na mesa. Então eles viraram uma carta e não entendi por que. |
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O jogo começou, mas não por muito tempo. Ao fim de uma ou duas rodadas eu me levantei e fui para o bar do hotel: |
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– Pensei que a gente ia jogar truco. |
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Ora, todo mundo sabe que as cartas principais do truco são o zápete (4 de paus), 7 de copas, espadilha (ás de espadas) e 7 de ouros. Essas são as manilhas. Que, quando inventaram essa nova e infame maneira de jogar, passaram a se chamar "manilha velha". |
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Alegando que os truqueiros costumavam marcar o baralho pra saber quais eram as manilhas, inventaram essa indesculpável profanação chamada "manilha nova", que consiste em virar uma carta e o zápete será a carta de cima. As demais manilhas, sei lá como se escolhem. E não sei também com que baralho se joga, se inteiro ou não. O truco, como seu semelhante, o poker (em ambos o blefe é a alma do jogo), joga-se com baralho reduzido. No caso do truco, apenas as figuras, ás, dois, três e as manilhas. |
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Pra mim, é o único jeito de jogar truco. |
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Alem das apostas, baralho e cerveja convivem muito bem! |
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Aquele pessoal era gente meio limitada. Nos meus bons tempos de Sesc e Senac, em cursos e seminários semelhantes, no Grande Hotel de Águas de São Pedro, que aliás tinha sido Cassino, pra desgosto de Dona Santinha, que acabou com eles, a gente jogava mesmo era poker, pra valer, cacife alto. |
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Se lá tivesse também rodas de poker, jamais teria me submetido a essa suprema e indelével humilhação da tal "manilha nova", cuja extensão só os truqueiros de verdade, aqueles do tempo do João Pedro, sabem calcular. |
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Nas férias, vim pra Pinhal e encontrei um antigo freguês da venda do meu pai, da roça, como a maior parte da nossa freguesia. Amigos fiéis do velho, desde seus tempos de baú nas costas pelas colônias, sítios e fazendas de café. E depois, nas vendinhas beira de estrada no Macuco e no Zé Elias. |
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Contei a ele minha estranha aventura no tal hotel no meio do nada, sem zápete, sem os dois setes, sem o espadilha. |
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Ele deu uma longa tragada no cigarro de palha – relíquia raríssima de um tempo risonho, um tempo de flores, mães e roupas coloridas de domingo –, fez uma pausa, e bateu a mão pesada e calosa no meu ombro: |
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– Seu Márcio, truco com manilha nova é que nem tomar cerveja em casa, com a mulher. |
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