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Teatro da Salvação: realidade ou encenação? |
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Dedico este artigo a Fernanda Gomes Alexandre, minha colega desde a faculdade de Letras (turma de 2006) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Fernanda é responsável por Edguy entrar na minha vida. Embora seja um fato recente – já que a banda se formou em 1992, quando eu era adolescente –, o gosto pela banda e a admiração pela música e letras que Edguy produz foram imediatos. Edguy tornou-se parte de mim. |
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Aleister Crowley (1875-1947), mago, ocultista britânico e criador da Lei de Thelema, e do Tarô de Thoth em parceria com a artista plástica Frieda Harris, tem sido uma figura recorrente como inspiração para letras de música entre os metaleiros, seja em tom de crítica, como foi no caso de Ozzy Osbourne em “Mr. Crowley” (“Você enganou todas as pessoas com magia”) ou como forma de homenagear aquele que foi e ainda é uma das figuras mais polêmicas e excêntricas do século XX, como podemos ver em letras de Bruce Dickinson – “Man of Sorrows”, que trata da infância de Crowley e de suas profecias sobre a Nova Era na vida adulta – e Jimmy Page, guitarrista da banda britânica de Rock/Heavy Metal, Led Zeppelin: seguidor e divulgador de Aleister Crowley, Page estudou, de forma aprofundada, a obra de Crowley e comprou a mansão Boleskine, na Escócia, que pertenceu ao mago. Page possui vários manuscritos de Crowley, vasto material de estudos de Ocultismo e outros assuntos a ele relacionados. |
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Se fôssemos citar todos os artistas que de alguma forma abordam Crowley em suas composições, tanto a lista como este artigo ficariam tão extensos a ponto de quase não terem fim. |
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Fotos de Aleister Crowley |
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Imagens editadas pela Autora |
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Para a banda alemã de Power Metal, Edguy, não foi diferente. Aleister Crowley é presença constante nas canções e álbuns do grupo: Out of Control, do álbum Vain Glory Opera (1998) que cita expressamente o nome de Crowley (“Onde quer que eu possa vagar ali será ódio e dor / Olho por olho, dente por dente, respeito é o que eu ganho / Eu olho para Sr. Crowley, forças maléficas: agora unidas / Eu serei seu pesadelo mais obscuro / Minha vida é uma luta fatal”). Golden Dawn, do álbum Mandrake (2001) refere-se à ordem da qual Crowley fez parte (“Golden Dawn, uma nova era começou / Golden Dawn em cada um / Não fuja, não diga que é tarde demais / Comece a tocar no ano: Golden Dawn”). New Age Messiah do álbum Hellfire Club (2004), é uma referência a Crowley que se autointitulava o messias da Nova Era (“Perdoe-me / Erga uma imagem esculpida / Eu sou o novo messias para o mundo / Você não pode ver / O esplendor da minha auréola / Mas eu sou o novo messias para o mundo / Para os cegos”). O título da canção Aleister Crowley Memorial Boogie, do álbum Age of the Joker, (2011) é autoexplicativo (“Olhe ao seu redor /Limpe seus sapatos e entre / Passe o portão / Tire seu casaco e deixe sua vida para trás”). |
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Dois momentos da banda alemã Edguy |
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Imagens in www.edguy.net |
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O poder do Metal |
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De origem incerta, o Power Metal – subgênero do Heavy Metal – pode ter surgido a partir da influência do Speed Metal (músicas com maior velocidade) e da música erudita. Com seus próprios subgêneros e outros “pesados” ou mais “melódicos” a ele fundidos, caracteriza-se por “fundir para inovar”, sem, contudo, dissociar-se das raízes e tradições do Heavy Metal possui como temas principais a religiosidade, a fantasia, o misticismo e a Idade Média, história, política, além de músicas românticas. O som caracteriza-se por ser mais veloz e poderoso – daí o nome Power Metal – e os vocais mais agudos, sem gutural. Além dos instrumentos conhecidos como o baixo, a bateria e a guitarra, também são utilizados os teclados e elementos sinfônicos. A maior concentração de fãs e de bandas de Power Metal ocorre na Europa (Alemanha, Itália e países escandinavos). Menos popular na América do Norte, encontra maior expressividade na América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) e na Ásia (Coreia do Sul e Japão). O Power Metal Melódio, subgênero em que Edguy se encaixa, tem sua origem na Europa dos anos 1980 e explora temas considerados “inteligentes” e de grande positividade, trazidos da música folclórica e da música clássica. |
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De acordo com Christe (2010: 126), “duas vezes mais rápido, duas vezes mais espinhoso [que o heavy metal], no power metal tudo era dobrado”. Algumas bandas utilizavam “duplas de guitarra solo, vocais histriônicos e baterias retumbantes para um lugar poderoso”. Além disso, as bandas de Power Metal mudavam o figurino, a imagem do Heavy Metal: deixavam de usar “calças colantes, cintos com balas de revólver”, “estampas de animais combinando”, “roupas de pele de animal de verdade” e “maquiagem fantasmagórica no rosto”. |
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“[…] as bandas de power metal eram criativas e autossuficientes, viciadas em inovações e, em vez de se aglomerarem em uma cidade como Londres, estavam geograficamente dispersas” (Christe, 2010: 130). |
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Ilustração em http://www.metalinsider.net/site/wp-content/uploads/2014/07/PowerMetal.jpg |
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Edguy, banda de Power Metal alemã fundada em 1992 em Fulda por Tobias Sammet e Jens Ludwig, possui 11 álbuns de estúdio (*), dos quais citamos quatro que possuem músicas referentes a Aleister Crowley (Vain Glory Opera, Mandrake, Hellfire Club e Age of the Joker). Além desses, citamos aquele cuja faixa-título será nosso objeto de análise: Theater of Salvation, de 1999. |
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(*) Savage Poetry (1995), Kingdom of Madness (1997), Vain Glory Opera (1998), Theater of Salvation (1999), The Savage Poetry (2000) – regravação de Savage Poetry, Mandrake (2001), Hellfire Club (2004), Rocket Ride (2006), Tinnitus Sanctus (2008), Age of the Joker (2011), Space Police: Defenders of the Crown (2014). |
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A banda é composta por: Tobias Sammet (21/11/1977 – vocal), Jens Ludwig (30/08/1977 – guitarra e vocais de apoio), Dirk Sauer (01/09/1977 – guitarra rítmica, Felix Bohnke (02/09/1974 – bateria) e Tobias Exxel (27/02/1973 – baixo). Os principais temas das composições de Edguy são magia (de salão e cerimonial), Crowley/Thelema, Esoterismo (Nova Era), dogmas da Igreja e perigos da civilização moderna. Para tratar de tais temas as letras possuem, na maioria das vezes, conteúdo metafórico e hermético. Temas referentes ao Power Metal, que mencionamos acima, também são utilizados para compor as letras: fantasia, medievalismo e religiosidade. |
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Uma canção emblemática na abordagem do mago britânico e sua ideia de livre-arbítrio é a poderosa Theater of Salvation (*), canção que será analisada no presente artigo. Não se trata de uma análise “fechada” ou mais correta da canção, mas uma forma de mostrar um ponto de vista, uma forma de tentar entender as intenções do autor e de ganhar novos contornos, de acordo com o conhecimento dos leitores. |
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A ideia é mostrar que os artistas do Heavy Metal – que até hoje sofre duras críticas e preconceitos por causa da maneira de seus seguidores se vestirem e se comportarem, sendo considerados satanistas, maloqueiros, drogados, desocupados, arruaceiros, mal educados e uma infinidade de adjetivos depreciativos – também compõem letras de conteúdo inteligente, profundo e que nos fazem refletir e questionar o mundo em que vivemos e a nós mesmos. |
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Teatro da Salvação |
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www.edguy.net/eng/music/TheaterOfSalvation.php |
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Para isso, utilizaremos textos referentes a Aleister Crowley e sua obra, Nova Era, Tarô, Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Heavy Metal: a história completa de Ian Christe e Guia da Transformação Thelemica de Frater B. 156 e às esferas, ou Sefirot, da Árvore da Vida, que “representam aspectos divinos da manifestação do Absoluto na existência”.. |
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A letra da música é um diálogo entre duas pessoas: aquele que tem a “visão”, que ouve as “vozes” em seu sonho, a visão propriamente dita que “fala” com essa pessoa. Há também o narrador. Conforme a diálogo se desenrola, a voz da pessoa que fala é a mais importante, a mais preponderante e que aparece em maior quantidade, já que esta pessoa está relatando sua experiência com as visões e a voz que ouve. A “voz” da visão (que aparece ao longo da canção em menor número), por seu turno, lhe responde, comenta e dá conselhos de como proceder em relação às questões levantadas ao longo da narrativa. A voz do narrador, menos frequente ainda, dá sustentação ao diálogo. |
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Aqui é necessário fazer uma observação: ao falar do Catolicismo não há intenção de fazer uma crítica deliberada à religião em questão nem a quem a siga, mas interpretar a letra com os elementos colocados pelo próprio autor. |
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Kether: o caminho da libertação começa |
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A letra tem início com a pessoa falando de vozes durante o sonho que teve: “Eu ouço vozes em meu sonho / Fizeram-me levantar, ajudaram-me a ver / Aaah...”. Se lermos a letra até o final e retomarmos a leitura veremos que levantar não se trata apenas de “sair da cama”, “deixar o leito”, uma vez que a pessoa estava dormindo, mas levantar-se no sentido de se “movimentar”, “dar vida” a uma ideia, “conquistar” algo, “tornar-se melhor”, de acordo definição do dicionário digital Caldas Aulete. |
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A definição do verbo levantar encontrada no dicionário pode ser confirmada pela voz do narrador que diz: “As visões o chamaram para acordar sua mente / Para encontrar seu horizonte / E encontrar o que pode estar por trás”. |
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Projeção astral e o Novo Aeon |
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Ilustrações em www.projecaoastral.com e 3.bp.blogspot.com |
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Neste trecho temos uma referência à Nova Era, como o período de um novo modelo e expansão da consciência, de uma nova mentalidade, de um novo espírito. A mente detém o poder sobre o corpo através do sonho e de experiências psíquicas. A Nova Era, Novo Æon ou Era de Aquarius – suplantaria a “Velha Era”, a Era de Peixes. Para a maioria dos esotéricos já estamos vivendo a Era de Aquarius e este período seria – ou já está sendo – marcado por aceleradas transformações culturais, individuais, sociais e tecnológicas e um grande desenvolvimento espiritual. |
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A respeito do Novo Æon, o Guia da Transformação Thelêmica nos informa: |
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“Como deveis saber, entramos em Novo Aeon. Uma Verdade mais alta foi dada ao mundo. Esta Verdade está à espera de todos que conscientemente a aceitam; mas tem que ser percebida antes que possa ser compreendida, e dia a dia aqueles que a aceitaram, e estão tentando vivê-la, aprendem mais e mais de sua Beleza e Perfeição” (p.5). |
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Chokmah: a sabedoria e a força estão no fundo da alma |
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A visão então, diz: “Pegue o que precisa / Você pode encontrar no fundo de sua alma! / Acorde o rei dentro de você / Para ser poderoso e bravo!”. De acordo com a “visão” tudo o que pessoa precisa é “acordar sua mente”, “encontrar o horizonte”, libertar-se, ter consciência de si mesma e do mundo, mudar seu futuro, perceber que o que ela precisa está dentro dela mesma e não em outro lugar, está “no fundo de sua alma”. Para alcançar esses objetivos é preciso agir como um rei, ou seja, ser “poderoso e bravo”. Aqui, vemos que Sammet valeu-se de termos relativos à figura da realeza para intensificar as palavras da visão, pois de acordo com o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “não se ganha uma batalha sem rei, diz um aforismo do médio-irlandês” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009: 775). |
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The Emperor - O Imperador
no Thoth Tarot de Aleister Crowley |
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Segundo os autores: “O rei é também concebido como uma projeção do eu superior, um ideal a se realizar. Não tem mais, então, nenhuma significação histórica e cósmica, torna-se um valor ético e psicológico. Sua imagem concentra sobre si os desejos de autonomia, de governo de si mesmo, de conhecimento integral, de consciência. Nesse sentido, o rei é, como o herói, o santo, o pai, o sábio, o arquétipo da perfeição humana, e ele mobiliza todas as energias espirituais para se realizar” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009: 776). |
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Neste momento, a pessoa reflete sobre sua vida, suas dúvidas, o medo que tinha de viver e o silêncio em que encontrava em relação aos seus desejos. A visão a fez desejar novamente a liberdade, ansiar e “suspirar” por ela, isto é, querer e almejá-la muito, pois até o presente momento a pessoa considera que sua vida fora um desperdício e agora que a “voz apareceu”, ela pode ver mais claramente, o desespero ficou para trás e a partir desse momento ela se considera livre, como podemos ver nos versos: |
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“Temporadas de dúvidas / Medrosos e silenciosos desejos de vida se foram / Visões chamaram de volta meu desejo / Por liberdade esta noite. |
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Fizeram-me suspirar... / Desperdiçando minha vida até o dia / Em que aquela voz apareceu... Fez-me ver: /Eu sou aquele que pode conseguir / Através de tempos de desespero, estou livre!”. |
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Esse desejo ocorreu por meio do Deus Interno dessa pessoa que, de acordo com Aleister Crowley, é quem a desperta, chama-a para a vida, para a realidade, pois essa pessoa é uma estrela, é importante e agora está se libertando, libertando-se de suas amarras. Na concepção de Crowley, descobrir o Deus Interno faz com que o ser humano evolua “até a maturidade, não necessitando mais de divindades externas – Deus ou Diabo –, tornando-se ele seu próprio deus e redentor”. |
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Aqui, temos a primeira referência à Thelema (do grego thelos, querer, vontade) sistema filosófico-religioso criado por Aleister Crowley. Trata-se do exercício da Verdadeira Vontade e do livre-arbítrio. É a expressão máxima da liberdade individual. De acordo com tal sistema, deve-se lutar “pela vivência da Liberdade de cada indivíduo”. |
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O Hexagrama Unicursal e um dos ditos criados por Crowley |
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“Em Thelema, considera-se a Divindade como algo imanente: isto é, que vive dentro de tudo. Logo, conhecer sua Vontade mais íntima também é conhecer a Vontade de seu Deus Interno. Esse processo de descoberta da Vontade além dos desejos do Ego constitui um método de realização espiritual baseado principalmente no autoconhecimento”. |
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Pouco compreendida pela maioria, tida “como uma licença para que se executem todos os desejos e caprichos que uma pessoa tenha, sem que haja responsabilidade ou consequências por seus atos”, este sistema/filosofia, contudo, “[…] prega justamente o oposto, partindo da ideia de que cada ser humano, por possuir livre arbítrio, é inteiramente responsável por sua existência e por suas ações, sem ser absolvido ou culpado por nenhum Deus ou Diabo no que tange o destino de sua própria vida”. |
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Assim, devemos, antes de tudo, respeitar as leis, o indivíduo e suas características, afinal, como Crowley mesmo deixou claro, “todo homem e toda mulher é uma estrela”. Isso quer dizer que cada indivíduo faz parte do universo, que cada um pode ter seu brilho próprio sem que para isso precise apagar o brilho do outro. Nesta concepção, não há necessidade ou motivo de colisão. |
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Binah: compreender para libertar |
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E a pessoa continua sua reflexão: “Eles construíram um símbolo de aviso / Para me deixar com medo / Para me deixar longe do paraíso / Apesar de eu estar tão perto / Esperando que eu não olhe / Para o que está para trás / Liberdade chamando...”. De acordo com o dicionário digital Caldas Aulete, símbolo, dentre outras definições, é tudo aquilo que representa outra coisa: um sinal, um signo, uma figura, um adereço, uma peça do vestuário. Pode ser representado por uma pessoa, animal ou objeto, como por exemplo: o símbolo da Inconfidência Mineira é Tiradentes; o símbolo da caveira em embalagens significa perigo; a pomba branca é o símbolo da paz. É “aquilo que revela um valor evocativo, mágico ou místico: O pão e o vinho são símbolos do corpo e sangue de Jesus Cristo”, dentre outros. |
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Imagem in www.regisaeculorumimmortali.wordpress.com |
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Com esses exemplos, ainda não está muito claro de que símbolo se trata, mas se avançarmos na letra veremos uma citação expressa da palavra “padre” e, mais adiante, “homem de preto” (como os padres geralmente são representados). Então, a partir daí, podemos ver que tal “símbolo de aviso”, construído para amedrontar a pessoa em questão trata-se do crucifixo, que geralmente aparece com o Cristo pregado, aumentando sua carga de suplício e sofrimento. Nesse caso, o Catolicismo – representado pelo crucifixo – tenta combater outras formas de pensamento que essa pessoa queira seguir de forma livre, pois para essa pessoa o “paraíso” é representado pela liberdade de pensamento e ações, e não algo dogmático (evocado pelo “símbolo” da canção). |
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Nesse momento a liberdade chama a pessoa e ela não deve olhar para trás, já que está bem perto de alcançá-la. Também podemos entender o paraíso não apenas como lugar, onde predomina a felicidade, o prazer e as coisas agradáveis, mas também como um estado dessa felicidade, desse prazer, desse algo que agrada. Esta ideia é confirmada com a definição de paraíso encontrada no Dicionário de Símbolos: |
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“...isso faz supor a intuição universal de um centro primordial único – sem localização, é claro – pois essa convergência perturbadora é menos dirigida a um lugar que a um estado” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009: 685). |
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Neste trecho também podemos considerar a ideia muitas vezes tomada pelas religiões dogmáticas: o homem vive em eterno pecado, é culpado pelos males da humanidade e faz parte da tríade pecado-culpa/arrependimento-castigo. E qualquer coisa vista fora de seus cânones pode ser tomado como pecado, heresia e homem precisa se arrepender, “tomar consciência” de seus “erros/pecados” e até se castigar, privar-se de algo. |
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De Chesed a Geburah: superando obstáculos |
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Agora, no trecho que chamamos de “refrão”, a voz diz à pessoa: “Olhe para o portão aberto / Ande e não fique com medo / Liberte sua mente naquilo que eles bradam / É o coração da tentação!”. Aqui, a voz exorta a pessoa a seguir em frente, atravessar o portão, isto é, passar de um estado a outro, ir do medo para a liberdade, como já dissemos, a liberdade de pensamento, de ações, sem se restringir a dogmas e regras. (Liberdade e sabedoria, assim como outras, são “palavras de ordem” em muitas das músicas compostas por Tobias Sammet). |
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Similar ao portão é a porta, e sobre ela encontramos no Dicionário de Símbolos: “A porta simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema. A porta se abre sobre um mistério. Mas ela tem um valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem, mas convida a atravessá-la. É o convite à viagem rumo a um além…” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009:734-5). |
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O portão, no caso da letra, semelhante à definição de porta do dicionário representa essa passagem que a pessoa está prestes a fazer, isto é, encontrar a tão desejada liberdade, e isso é reforçado pela voz que a convida e a exorta a atravessá-la: |
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“Ande, ande e não fique com medo”, e não tenha medo das regras impostas pela doutrina cristã católica, pois aqui é que se encontra “o coração da tentação”, isto é a essência tentadora: atravessar ou não o portão? Caminhar ou não rumo à liberdade? Desistir justo agora que está tão perto? É como se a pessoa tivesse tido uma espécie de revelação. O refrão, então, é repetido para enfatizar a importância de nos libertarmos daquilo que nos impede de buscar as respostas para os nossos questionamentos de forma independente. E a pessoa decide: “... Oh... Seguirei o caminho”, dando a entender que não voltará às antigas formas de pensamento, aquelas contestadas e questionadas pelas ideias da Nova Era. |
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Tríptico de Hans Memling - Juízo Final (1467-71) |
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Detalhe da obra em www.hoocher.com |
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Continuando sua reflexão, a pessoa diz: “Noite após noite / Eu me lembrei da palavra do padre: / ‘Você não deve! Nunca ceda às promessas feitas pela besta /Então, ajude-me Deus! / Nunca ceda à tentação ou você queimará no inferno / Por um longo, longo tempo! / Salvação eterna para sempre é o que eu posso vender se você permanecer cego!”. Este trecho confirma a ideia colocada na estrofe antes do refrão: o símbolo ao qual a pessoa se referia era realmente a cruz do Catolicismo. Aqui, ceder “às promessas feitas pela besta” refere-se não apenas ao “animal simbólico, descrito no livro do Apocalipse”, mas aos “pecados” terrenos, coisas prazerosas que desviam o homem de sua fé e das regras preestabelecidas. |
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Ao mesmo tempo em que o padre pede a ajuda de Deus, ele faz uma ameaça: se a pessoa desobedecer a essa ordem imposta por ele, se ela ceder “às promessas feitas pela besta”, seu fim será queimar no inferno “por um longo tempo”, que pode ser entendido como “habitação dos demônios e lugar destinado ao suplício das almas dos malvados, pecadores, perversos”, “situação de sofrimento ou martírio”. Além disso, é clara a crítica à ideia de salvação presente no verso: “Salvação eterna para sempre é o que eu posso vender se você permanecer cego!”. |
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A fé tornou-se venal: pode-se obter a “salvação eterna” comprando um lugar no paraíso. Para isso basta “permanecer cego”, ou seja, que não questionar as regras impostas pelo padre/Igreja, ser submisso e incapaz de tomar suas próprias decisões. |
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Ilustração in www.livroracional.com.br/attachments/Image/portal2.jpg |
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“Mas eu quero saber o que jaz por trás do portão de seu inferno / E não acreditarei em todas as histórias que / Eles sempre contam. Eu tenho cabeça para descobrir o que é certo e o que é errado / Liberdade chamando...”. Neste trecho, a pessoa percebe que estão escondendo algo dela, não estão lhe contando toda a verdade e ela não deve acreditar em tudo o que dizem, em todas as suas “histórias”. Para essa pessoa esse “inferno” trata-se de enganação, uma mentira e uma pretensão para afastá-la de seus desejos e sua forma autônoma de pensar e agir. Mais uma vez temos a clara referência à lei de Thelema, pois essa pessoa se considera dona de seu livre-arbítrio, capaz de discernir sobre qual caminho seguir, sem precisar da ajuda, nesse caso, de dogmas religiosos. E enfaticamente a liberdade a convida a seguir em frente. |
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Tiferet: harmonia e alegria rumo ao paraíso |
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Após a dupla execução do refrão, novamente o autor recorre à figura da realeza, neste caso, a rainha, como uma metáfora para a liberdade, aumentando sua expressividade. Além de ser a figura feminina do rei, ela representa a superioridade, ela é soberana, tal como deve ser a liberdade: “Minha rainha eu anseio por você”. |
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A alegria é outra metáfora utilizada para a liberdade, e a pessoa questiona sua própria liberdade: “Diga-me por que esperar para encontrar nossa alegria”, já que este sentimento de contentamento, satisfação, felicidade deve ocorrer logo, não há tempo a perder. E aqui percebemos que a pessoa deseja a liberdade coletiva, e não apenas a sua própria, pois o pronome possessivo é “nossa”. |
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Nesse ponto, a pessoa chama a atenção para o fato de que essa é a porta de entrada para o paraíso – outra metáfora para a liberdade – e não devemos nos sentir amedrontados, já que o medo é uma forma de controle mental e impeditivo para realizar nossos desejos. Isso faz que diminuamos enquanto aquele que nos causa o medo cresça e faz com que nos esqueçamos de nossa força interior, de quem realmente somos. É o que podemos ver no conjunto da estrofe: “Minha rainha eu anseio por você / Diga-me por que esperar para encontrar nossa alegria / É a sua espera pela porta do paraíso / Seu medo os faz crescer / E deixa você esquecer o presente”. |
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Neste momento parece que a liberdade é personificada e sua voz pode ser ouvida pela pessoa: “Eu nunca irei e eu ficarei ao seu lado / Eles nunca saberão que o que dei para você / É um pedaço de paraíso”. Ou seja, a liberdade, sua companheira e amiga, é quem lhe mostrou o “paraíso”, que é visto como mencionamos mais acima. |
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Netzach: a vitória do livre-arbítrio |
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Na estrofe seguinte podemos ver que a pessoa comemora essa nova vivência com a liberdade. Como ela mesma diz, agora está “vivendo” de fato e o céu pode esperar, pois agora é que sua vida começou, como podemos ver em “O céu pode esperar! Agora eu estou vivendo! / O céu pode esperar para sempre!”. Novamente temos a presença da ideia de Thelema e livre-arbítrio nos versos: “O céu pode esperar! / Eu vou viver como quiser antes de morrer”. Está decidido: “O céu pode esperar! Você não pode me impressionar”. Agora não há mais nada que possa impedir essa pessoa de encontrar, sua liberdade, seu verdadeiro eu. Nada mais que possa ser colocado de forma dogmática a espanta ou convence. |
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O verso “Agora eu estou vivendo!” pode ser comparado com o trecho retirado do Guia da Transformação Thelêmica: “É sobre a liberdade que eu primeiro quereria vos falar; pois a não ser que sejais livres para agir, não podeis agir” (p. 16), e mais adiante: |
“Quando as tentações tiverem sido sobrepujadas, quando a voz da Razão tiver sido silenciada, então vossa alma pulará avante, desimpedida, em seu curso escolhido; e pela primeira vez vós experimentareis o extremo deleite de serdes Mestre de vós Mesmos, portanto do Universo” (p. 18). |
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In lapostexaminer.com/wp-content/uploads/2014/07/Aleister_Crowley-Feature.jpg |
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“O céu pode esperar! Dançaremos até morrer”. Mais uma vez temos a ideia de coletividade para alcançar a liberdade, pois nós “dançaremos até morrer”, ou seja, comemoraremos e celebraremos esse fato para todo o sempre. A definição de dança do Dicionário de Símbolos confirma nossa ideia de celebração: |
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www.oblogdoandrew.files.wordpress.com |
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“A dança é celebração. […] O que é essa febre, capaz de apodera-se de uma criatura e de agitá-la até o frenesi, senão a manifestação muitas vezes explosiva do Instinto de Vida, que só aspira rejeitar toda a dualidade do temporal para reencontrar, de um salto, a unidade primeira, em que corpos e almas, criador e criação, visível e invisível se encontram e se soldam, fora do tempo, num só êxtase. A dança clama pela identificação com o imperecível; celebra-o (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009: 319). |
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Sempre enfatizando com a frase “O céu pode esperar!” a pessoa faz uma saudação irônica: |
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“Bem vindo ao / Teatro da salvação”, pois aqui “teatro” pode ser entendido como aparência, ilusão, fingimento, uma mera encenação e uma atitude falsa, e não algo verdadeiro como deveria ser a salvação, pois como dissemos acima, a fé/salvação tornou-se venal, fingida e hipócrita. O autor enfatiza a ideia de comemoração, alegria e surpresa com constante uso de frases exclamativas. |
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Hod: o esplendor do reino da liberdade |
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Na estrofe seguinte temos uma alternância das palavras do padre – o homem de preto – e da pessoa, que não apenas as recusa como garante que não há mais como convencê-la a voltar atrás: “‘Aleluia, Aleluia!’ / Eu ouço o homem de preto, seu / ‘Aleluia, Aleluia!’ / Ele tenta me deixar pra trás. Não! / ‘Aleluia, Aleluia!’ / Tranque os portões da sabedoria / ‘Aleluia, Aleluia!’ / Tarde demais! Eu encontrei o reino...”. Para essa pessoa encontrar o “reino” – metáfora para a liberdade – ela não deve ouvir tais palavras, caso contrário será deixada para trás. Então exclama: “Não!”. |
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Trancar os portões da sabedoria pode ser entendido como proteger-se das palavras e ideias impostas pelo sacerdote. Aqui temos uma alternância de “aleluia”, palavra constantemente repetida pelo padre e como resposta da parte da pessoa. Dita pelo padre significa expor as regras e a doutrina dor ele defendidas, isto é, os ensinamentos da Igreja, pois aleluia, do hebraico, significa louvar, adorar a Deus. Dita pela pessoa, aleluia denota sua alegria e prazer em ver-se livre das ideias do padre. |
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Yesod: o fundamento e o equilíbrio da liberdade |
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Agora, quem profere “aleluia” é a própria pessoa, pois nesta estrofe ela tem uma conotação diferente daquela utilizada pelo padre na estrofe anterior: “aleluia” significa “exclamação de alegria”, de felicidade e regozijo por ter conseguido ver-se livre da influência do padre. A alegria e felicidade são sentidas como se fossem acompanhadas por uma “banda de anjos”, em tom de comemoração. A liberdade está sempre chamando e não há mais motivo para acreditar nas “histórias” do padre, ou seja, em suas mentiras, o que podemos observar nos versos: “Aleluia, Aleluia! / Eu vejo um bando de anjos Aleluia, Aleluia! / Liberdade chamando… / Aleluia, Aleluia! / Eu não temo as histórias / Aleluia, Aleluia! / Liberdade me chamando…”. Neste momento, ecoam as “vozes” da visão, questionando a pessoa: “Você não vê? Você não sente?” e reafirma, como na estrofe anterior: “Liberdade chamando…”. Sempre a liberdade, condição fundamental, sine qua non para viver em plenitude, para que medos e tentativas de controle sejam superados. |
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Músicos angélicos |
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Obra de Hans Memling (1480) |
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O refrão é então repetido para concluir a letra e enfatizar a importância de lutar pela liberdade sem medo, para que essa condição efetivamente ocorra. Para isso é preciso agir de forma independente sem deixar-se manipular, como dissemos, com a consciência de si mesmo, de seu lugar no mundo. E o horizonte será encontrado se agirmos com coragem e não simplesmente aceitando aquilo que é imposto por alguém ou um determinado grupo. |
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Malkhut: a conquista do reino da liberdade |
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A letra/canção é finalizada como a “voz” da visão que diz: “... E, finalmente, a visão acrescentou: ‘Vá e encontre as respostas em si mesmo; / e lembre-se sempre: Você já está vivendo’ / Não deixe que eles te assustem em sua busca por respostas e para a salvação - para a salvação real...”. |
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Nesta passagem a visão enfatiza o que já foi dito ao longo da letra: é a própria pessoa que deve buscar suas respostas, seu caminho e não ficar presa apenas à opinião alheia, pois a verdadeira salvação não está baseada somente em crenças e dogmas preestabelecidos. |
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Tanto as respostas como as soluções para questionamentos, medos e dúvidas está em um único lugar: dentro de cada um de nós, e de acordo com a visão, “no fundo de sua [nossa] alma”. |
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Daath: o conhecimento libertador |
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Como vimos, a partir de uma letra de Heavy/Power Metal podemos extrair interpretações que nos fazem buscar as mais variadas referências e com isso poder apreciar melhor a composição. Tobias Sammet, principal compositor da banda mostra-se um letrista inteligente e profícuo, pois longe de apenas fazer críticas ferrenhas ou repulsivas, constrói toda uma narrativa com elementos metafóricos, filosóficos e que ativam nosso conhecimento prévio, nosso conhecimento de mundo. É claro que as composições são feitas para apreciação e fruição, para serem ouvidas em volume máximo se quisermos, mas elas também carregam a visão e a opinião do(s) autor (es) sobre a vida e mundo. |
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E Theater of Salvation nos mostra essa visão, essa opinião de que não necessariamente precisamos fazer apenas o que os outros querem que façamos, ser apenas como os outros querem que sejamos, mas agir de acordo com nossas necessidades, possibilidades e consciência. |
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Ao contrário do que muitas pessoas pensam, usar nosso livre-arbítrio, viver como queremos, não significa que podemos sair por aí como inconsequentes, cometendo toda sorte de delitos, infringindo leis e regras. Não é bem assim, afinal somos seres sociais, convivemos com a diversidade de pessoas e de ideias diariamente. |
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O que Crowley imaginou com seu Thelema foi que devemos nos relacionar com quem quisermos e da forma como desejarmos, viver e escolher como e quando iremos morrer, contudo sem ferir a dignidade alheia, respeitando a individualidade de cada um, pensando nas consequências de nossos próprios atos. |
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Imagem do encarte do álbum Theater of Salvation. |
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Acervo da autora. |
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Por outro lado, hoje em dia viver de acordo com o “faça o que tu queres” seria inviável pelos motivos já expostos. Evidentemente, o mundo mudou, as pessoas mudaram da época de Crowley para cá. Querendo ou não fazemos parte de um código social que precisa ser seguido, mesmo muitos deles sendo injustos. E da mesma forma, assim como para Crowley liberdade foi a palavra de ordem, para Tobias Sammet também é. Isso fica evidente na maioria das letras que compõe. Theather of Salvation é exemplo disso. A nosso ver, Sammet deixou sua mensagem e cumpriu sua dupla meta: agradar ao público metaleiro com essa excelente letra/canção e abrir nossa percepção para nossos questionamentos interiores, nossa forma de ser e estar no mundo de forma inteligente, não com meros versos de ofensas, porém com um rico uso de metáforas, símbolos, com sua linguagem elaborada e lúcida. |
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Agora que chegamos ao final, podemos apreciar a canção no link: |
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https://www.youtube.com/watch?v=uM-ksdsd8dk |
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Referências: |
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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 24ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
CHRISTE, Ian. Heavy Metal: a história completa. DURANTE, Milena; ZANTOZ, Augusto (Trads.). São Paulo: Benvirá, 2010.
FRATER B. 156 (Org.) Guia da Transformação da Thelêmica. 1970. |
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