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Lygia Fagundes Telles e os Caminhos do Tarot |
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Os Arcanos Maiores |
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“O mais importante é indizível” |
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Lygia Fagundes Telles
explicando
a criação literária
em uma palestra na FNAC de São Paulo |
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O Tarot é um jogo de baralho que possui vinte e duas cartas que correspondem aos Arcanos Maiores (os grandes mistérios) e mais cinquenta e seis cartas que correspondem aos Arcanos Menores (os pequenos mistérios), dando um total de setenta e oito cartas. O jogo de Tarot é uma miniatura do Universo, assim como também é o homem. À parte seu caráter divinatório, o jogo de Tarot representa, antes, um caminho evolutivo através de símbolos. |
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Lygia Fagundes Telles, a grande dama da literatura brasileira, diz, no prefácio de “Meus Contos Preferidos”, que “O ser humano é inexplicável e impotente diante do mistério da morte e do amor”. Entretanto, ela criou em sua obra uma gama tão extensa e diversificada de personagens que explicam a vida, o amor, a morte e todos os mistérios do ser humano com uma profundidade e uma verdade que poucos autores conseguiram alcançar. Ela diz o indizível e explica o inexplicável. Portanto sua obra pode também ser considerada um caminho evolutivo. |
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Lygia Fagundes Telles na mocidade e às vésperas de completar 90 anos, em 2013 |
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O entendimento é uma das etapas finais do processo em direção à luz e ler Lygia é compreender todos esses mistérios que rondam a vida das pessoas. Desta maneira, apresento, através dos Arcanos Maiores, a correspondência entre essas cartas do Tarot e os personagens de Lygia. Obviamente esses personagens são complexos e ao longo de seu desenvolvimento na trama podem representar várias energias distintas ao mesmo tempo. |
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O critério que usei para escolher qual personagem ou qual situação representa melhor cada energia foi a que mais claramente podemos identificar, a que sintetiza a personagem ou a situação de um modo geral. Assim, explicarei a energia de personagens e situações por um aspecto, aquele que mais chama a atenção no conjunto, mas deixando claro que tanto os personagens quanto as situações da obra de Lygia possuem uma tessitura extremamente desenvolvida e sua composição é uma mescla de várias energias que se alternam. |
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Começarei essa apresentação com os Arcanos Maiores. O tarot usado para esta análise é o Rider Waite Smith, onde há inversão de ordem entre as cartas d’A Força e d’A Justiça. |
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0. O Louco – Confiança, busca, ingenuidade. |
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Leontina. A carta do Louco é a carta de número zero e primeira carta do caminho. Geralmente é representada por um jovem à beira de um abismo. Esta é uma carta de energia jovial, de confiança, de ingenuidade e de quem tem muito ainda para aprender na vida. No conto “A Confissão de Leontina”, a personagem principal tem essa mesma energia. A ingenuidade de não perceber que o primo é ruim e que derrubou sua irmãzinha de propósito, provocando nela sérios danos cerebrais. A confiança, após a morte da mãe, de entregar a casa e tudo que ela tem para esse mesmo primo em troca da promessa de que ele posteriormente cuidará dela. A ingenuidade de achar que o velho que lhe oferece ajuda tem mesmo boas intenções. A ingenuidade ainda maior de ir à loja devolver o vestido comprado por este mesmo velho após tê-lo assassinado acidentalmente. |
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A carta do Louco é o primeiro passo daquele que ainda não vê a maldade no mundo e não sabe se defender. A lição desta carta não é aprender a maldade, mas sim a observação: ir devagar conhecendo o terreno antes de pisar com tudo. Leontina não observa, não percebe e se entrega sempre sem nunca desconfiar de nada. A ela resta o aprendizado da maneira mais difícil antes de fechar o ciclo. E que longa será esta jornada! |
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1. O Mago – Energia, alquimia, transmutação, maturidade. |
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Raul. O Mago é a carta das transformações alquímicas. É a carta do feiticeiro, daquele que é capaz de transformar pessoas e situações. Ligado diretamente à carta da Força, o Mago geralmente vem representado por um mágico diante de uma mesa segurando uma varinha que representa o naipe de Paus (fogo/espírito). Na mesa há uma taça que representa o naipe de Copas (água/emoção), uma moeda que representa o naipe de Ouros (terra/físico) e uma espada representando o naipe de Espadas (ar/razão). O Mago domina os quatro elementos e interage com todas as forças universais. |
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No romance “As Horas Nuas”, Raul é o gato que sabe tudo que está se passando, não só com sua dona Rosa Ambrósio, numa mescla de pensamentos, mas que também percebe e compreende tudo à sua volta. É um vulto que está sempre observando, pequeno demais para ser gente – é o gato, o mago. Desde a gatinha Filó que compreende tão bem a alma de Gina, no conto “Uma Branca Sombra Pálida”, até o gatinho que vem com uma medalha no pescoço, no conto “A Medalha”, na obra de Lygia o gato exerce um papel fundamental, aparecendo em diversas histórias como um feiticeiro ou como a razão de fora que compreende os motivos internos de todos os outros personagens. |
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A lição desta carta (e de todos os gatos que permeiam a obra da autora) é a alquimia, a transmutação e o entendimento da alma em seu sentido mais profundo. |
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2. A Papisa – Intuição. |
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A mãe de Tomás. A carta da Papisa é uma carta que possui energia feminina intuitiva e geralmente sua figura é a representação de uma sacerdotisa sentada em um trono. |
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No conto “As Pérolas”, a mãe de Tomás é a grande representante desta energia. Ela é uma mulherzinha raquítica e molambenta que nada possui na vida a não ser olhos poderosos e desvendadores (e foi dela que Tomás herdou o dom de pressentir). A Papisa é a carta da sabedoria feminina, da mulher que entende os processos da vida e sabe que há coisas que, ainda que possam ser pressentidas, não podem ser impedidas. E a mãe de Tomás diz ao marido: “E o que eu podia fazer senão esperar?”. Não interferir no que está escrito e no que não pode ser alterado é a grande lição de sabedoria da Papisa e também a grande lição desta carta e desta personagem. |
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3. A Imperatriz – Criatividade, fertilidade |
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Patrícia. Das figuras femininas, a Imperatriz é a mulher mais forte do Tarot. Geralmente esta energia é representada por uma mulher grávida sentada em seu trono, sendo a gravidez, aqui, um símbolo da fertilidade e da criatividade. No romance “Verão no Aquário”, Patrícia é a mãe da narradora da história. Patrícia é uma escritora calada, uma esfinge. Uma mulher forte, de personalidade fria e decidida, que possui uma relação muito turbulenta com sua filha Raíza e uma amizade não explicada com o jovem padre André. Parte desta amizade lhe serve de alento para os problemas que tem com a filha e a outra parte é a causa de todos esses problemas. Seu ponto de vista é narrado pelo olhar da filha com pitadas de uma ou outra opinião a seu respeito dos personagens que estão em segundo plano. Somente na conclusão da história nos é dado conhecer o que ela realmente pensa. E o ponto de vista dela é a chave que fecha o romance. A lição desta carta e desta personagem é a força da conquista através da luta, a arte de se calar para que os outros possam chegar às suas próprias conclusões e conseguirem enxergar a Imperatriz como ela é de fato. |
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4. O Imperador – Conquistas |
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A figura do Pai. De Raíza, de Gina e de Cordélia. Enquanto o rei herda o seu reinado, o imperador conquista o seu império através da guerra. Sua energia é representada pelo Imperador, com uma enorme coroa na cabeça e um cetro nas mãos, sentado em seu trono da vitória. Nos romances “Verão no Aquário” e “As Horas Nuas”, as duas jovens, Raíza e Cordélia, nos são apresentadas adultas e seus pais estão mortos. Nestes dois romances as duas jovens ainda tem mãe: Patrícia e Rosa Ambrósio, respectivamente, que sempre perdem a guerra de educar as filhas para a figura paterna, pois um mito não se derruba. E, sobre isto, Rosa Ambrósio faz a brilhante colocação: “E o pai pedindo que eu não interfira, ela é livre, deixa que faça sua escolha. Deixei. Então, na surdina, ele foi saindo de cena, ah, sim, em certas ocasiões fica mais cômodo morrer.” Estas figuras paternas fazem ponte também com o pai de Gina do conto “Uma Branca Sombra Pálida”. A lição destas figuras míticas paternas e desta carta é a conquista e a vitória, sempre. |
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5. O Sumo Sacerdote / Hierofante – Tradições, resgates. |
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O Espartilho. O sumo sacerdote ou hierofante nos apresenta uma energia de comportamentos sociais e familiares que são justos como um espartilho. No conto O Espartilho, Ana Luísa vive o dilema de conviver com sua avó extremamente rígida que vive presa dentro do espartilho e dessas tradições. A avó, por outro lado, vê na neta uma jovem obscura, sem ambição e incapaz de seguir um rumo independente destes valores impostos pela sociedade e lutar por uma vida de maneira mais moderna e independente. Este conto põe em xeque a tradição à qual a mulher deveria se ajustar na figura desta avó que já está acostumada a apertar-se dentro destes valores e acha que tudo deve seguir desta maneira. Este é mais um conto de Lygia que confronta os velhos e os novos valores e a lição desta história e desta carta é aprender as tradições para poder rompê-las e resgatar depois apenas os pontos que nos são importantes.
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Neste conto "O Espartilho" a avó é rígida mas espera da neta uma libertação destes moldes impostos pela sociedade. Sempre diz à menina: "Você tem que lutar!" É um conto bastante profundo e sugere que através da neta a avó quer libertar-se a si mesma das imposições sociais. |
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6. Os Amantes – Atração, alianças. |
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Lavínia e Tomás. A carta dos amantes possui uma energia triangular, representada por um casal junto a um anjo observador. No conto “As Pérolas”, Lavínia e Tomás vivem um amor meio esgarçado, mas ainda amor, que está prestes a ruir diante do encontro de Lavínia com Roberto (o anjo que pode ser caído ou não), numa reunião à qual Tomás não comparecerá por motivos de saúde. Todo narrado no futuro, este conto mostra a fragilidade de Tomás diante da doença grave, da possibilidade de sua morte rápida e do vislumbre de sua esposa já nos braços do outro. Uma vez que Tomás, ao fim da história, entrega a Lavínia o colar de pérolas – que é o eixo central da composição deste quadro que seduzirá Roberto na reunião – vemos que a lição, tanto desta carta quanto deste conto, é a abnegação em prol do amor verdadeiro (esta carta faz paralelo ao Ás e ao Dois de Copas). |
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Algumas capas de livros publicados por Lygia Fagundes Telles |
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7. A Carruagem – Determinação, direção. |
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Doutor Werebe. A Carruagem é a carta dos cursos e das diretrizes e esta energia geralmente é representada por uma carruagem puxada por dois cavalos. No conto “W M”, o narrador, Wlado, é ajudado pelo Doutor Werebe (seu psiquiatra e sua carruagem) a fazer a descida ao seu subconsciente. “O silêncio ajuda a abrir o intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo e para ajudá-la preciso eu também descer aos infernos.” Enquanto o Doutor Werebe dá a direção, Wlado procrastina a aceitação de que sua irmã Wanda está morta há muitos anos e que Wing, sua namorada chinesa, foi assassinada por ele próprio. A lição desta história e desta carta é saber administrar os passos, olhar o caminho como ele de fato é, e ter coragem para continuar seguindo a estrada da vida. Se a gente para, a “carruagem” nos atropela. |
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8. A Força – Força. |
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Romana e Tigrela. A carta da Força é uma carta que ensina a domar instintos e situações difíceis. Geralmente vem representada por uma jovem acariciando um leão. Neste caso, um tigre. “Tigrela”, um conto muito peculiar da autora, pode ser analisado em três níveis: No primeiro, que oferece uma perspectiva dentro do gênero “maravilhoso fantástico”, vemos uma jovem que se transforma em tigresa e sua relação com sua dona, numa alternância de papéis, ora como caça, ora como caçadora. No segundo nível, Tigrela seria um avatar em forma de tigre que Romana usa para esconder de sua amiga as relações íntimas que possui com a jovem que mora com ela. E no terceiro nível – o mais profundo e mais triste – podemos dizer que Tigrela não existe e que este é apenas mais um conto de Lygia falando sobre a solidão. De uma maneira ou de outra, a lição desta carta e deste conto é desenvolver a nossa força pessoal diante de qualquer atribulação “selvagem” e a capacidade de transmutar o chumbo em ouro, ou o instinto de uma tigresa num humor dócil de uma mulher. Esta carta faz paralelo à carta do Mago e aos gatos da obra de Lygia do ponto de vista da transformação. |
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9. O Eremita – Introspecção, segredos. |
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Lucinda e Aristeu. A carta do Eremita geralmente é representada por um velho segurando uma lamparina na porta de uma caverna. Esta é uma carta de segredos, ainda que a luz esteja em nossas mãos. Por um momento ele hesita se quer ou não entrar na caverna para ver o que tem lá dentro. Aqui aprendemos a respeitar limites. Há coisas que é melhor não saber, ou que é melhor esperar o momento certo. Lucinda e Aristeu são amigos do narrador no conto “Olho de Vidro”, um texto muito interessante de começo de carreira, que está na coletânea de contos “Cacto Vermelho”, o terceiro livro lançado pela autora. O narrador desta história é um detetive pago por um velho para seguir sua jovem esposa, que se parece com Laura, a parceira do narrador que já o traiu. O contraponto é o casal amigo que olha Laura com desdém. Lucinda e Aristeu mantêm um relacionamento dentro da caverna do Eremita e o que se passa lá dentro não se sabe, enquanto que Laura é a lamparina que nos mostra a luz e a que veio (“Pelo menos é franca, diz o que pensa, não fica se escondendo como uma lagartixa”). Aqui a lição é a escolha. A luz da lamparina (Laura e o narrador) ou a escuridão da caverna (Lucinda e Aristeu). Até onde devemos ou queremos saber sobre as pessoas que estão próximas a nós. |
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10. A Roda da Fortuna – Ciclos, altos e baixos, instabilidade. |
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Ciranda de Pedra. A Roda da Fortuna gira, o que está em cima desce e o que está embaixo sobe. Esta carta é representada obviamente por uma roda. No romance “Ciranda de Pedra” vemos uma ciranda de cinco anões de pedra que representam: Bruna, Otávia, Letícia, Afonso e Conrado. Cinco crianças ricas que fascinam a infância de Virgínia (a meia irmã de Bruna e Otávia, criada pela mãe e pelo amante em condições modestas). Virgínia passa os finais de semana na casa do pai de criação, junto de suas irmãs sem saber que o pai não é seu pai verdadeiro. Quando a mãe morre e o amante se mata, a empregada conta a verdade à Virgínia, que se isola num colégio interno. |
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Na segunda parte do livro, Virgínia, já adulta, retorna à casa de seu pai de criação e reencontra os cinco que tanto a fascinaram na infância. No giro da roda da sorte, o jogo se inverte e ela então é que passa a fascinar a todos do grupo. E neste giro da roda não só o jogo de sedução se inverte, como também Virgínia passa a olhar estes cinco com outros olhos e já não os acha mais tão grande coisa assim. Este grande romance de Lygia é, para a crítica literária, o marco da maturidade da escritora. |
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11. A Justiça – Verdade, revelações. |
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A tapeçaria. “Olhos vedados. Na mão esquerda a balança e na esquerda a espada. Ou a balança estava na mão esquerda? Os detalhes.” Com esta descrição, feita na página 180 do romance “As Horas Nuas”, a autora descreve a representação desta energia implacável. A justiça reveladora pondera com a balança e ataca com a espada. No conto “A Caçada”, o narrador para todos os dias diante da tapeçaria de uma loja, atraído por lembranças de seu subconsciente. Nesta tapeçaria antiquíssima, que não pode ser vendida porque irá se desfazer se for solta da parede onde está, o narrador insiste em saber mais do que deveria. A tapeçaria mostra uma caçada e o narrador força sua memória todos os dias para se lembrar de que ele foi o caçador desta cena. A insistência do personagem desvela o segredo e no fim da história os fios da tapeçaria invadem os fios narrativos do conto. Enveredando para o gênero “maravilhoso fantástico”, a tapeçaria toma conta da história e, com energia inexorável e inflexível, revela ao narrador que, por alguma razão justa, ele era a caça e não o caçador que ele queria ser. |
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12. O Enforcado – Suspensão, novas perspectivas. |
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Laura. A carta do Enforcado é representada por um jovem pendurado de cabeça para baixo por um dos pés. Essa energia de inversão ao olhar para a realidade pode ser notada na personagem de Laura no romance “Ciranda de Pedra”. |
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Eva Wilma como Laura na primeira versão televisiva de “Ciranda de Pedra” |
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Mãe de duas jovens, Bruna e Otávia, de seu casamento com o rico Natércio, Laura também é mãe de Virgínia, filha de seu amante Daniel. Numa época de repressão social intensa em que era muito difícil para a mulher assumir seus desejos e escolhas, Laura, ao deixar o marido e assumir Daniel, acaba pouco a pouco enlouquecendo. Assim como o enforcado que vê a realidade de ponta cabeça, Laura enxerga tudo através de um espelho quebrado e devagar vai se desligando, tanto de seus afetos, quanto de tudo mais à sua volta. A lição de Laura e do Enforcado é o olhar sob nova perspectiva, pois, ainda que tudo ao redor esteja invertido ou espatifado, o sopro lá dentro continua perfeito como o espelho antes de cair no chão. |
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13. A Morte – Transformação, grandes mudanças. |
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Ana Clara. A carta da Morte é a carta das transmutações, daquilo que é inevitável e drástico. Geralmente ela é representada por um esqueleto. Ana Clara ou Ana Turva, no romance “As Meninas” é uma jovem linda e cheia de sonhos que, por seu jeito de ser, ao mesmo tempo em que provoca raiva, encanta as duas amigas que moram com ela no colégio interno. |
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Contando mentiras para que ela mesma possa acreditar que sua vida é melhor do que de fato é, Ana Clara se envolve com bebida, drogas e acaba falecendo antes mesmo de realizar qualquer um de seus sonhos. Em várias palestras, Lygia confessou que por muito tempo sentiu a morte desta personagem e que sonhou com ela, várias vezes, pedindo um retorno. “Ela era tão jovem e ainda tinha tanto a dizer.” A carta da morte nos ensina que a vida é cíclica, mas tudo que acaba pode renascer de outra maneira. Assim podemos notar que esta linda jovem de fato não morreu totalmente. Um pouco da Ana Clara renasceu em Rosa Ambrósio e Luisiana. Duas personagens mais velhas de obras posteriores, mas com o mesmo modo de pensar e de se jogar de cabeça nesta paixão pela vida. |
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Drica de Moraes, Claudia Liz e Adriana
Esteves na versão cinematográfica
de “As Meninas" |
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14. A Temperança – Paciência. |
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Ananta Medrado. A carta da Temperança é a carta que nos ensina a manter a calma. Sua energia é de fluidez, de resignação às importunações e ela é representada por um anjo que despeja água de um jarro para outro, infinitamente. Ananta Medrado é a psicanalista de Rosa Ambrósio no romance “As Horas Nuas”. Tranquila e perseverante, com uma paciência sem limites, ela ouve Rosa Ambrósio por quase todo o romance e, em determinado momento da história, desaparece sem explicação, deixando sua paciente livre para poder crescer e, sozinha, alcançar a compreensão de si mesma: “Se ela não tivesse sumido eu estaria estendida naquele divã ou em algum outro falando em vão em vão em vão – não é extraordinário? Posso andar sem muleta, ô meu pai!”. Pode-se ainda fazer uma ponte do desaparecimento de Ananta à morte de André em “Verão no Aquário” e ao vulto de Conrado se apagando no pôr do sol em “Ciranda de Pedra”, pois as três protagonistas, Rosa Ambrósio, Raíza e Virgínia (que precisavam destes três apoios: Ananta, André e Conrado), na verdade são fortes e podem caminhar sozinhas. |
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15. O Diabo – Trapaça, apego, desejos profundos. |
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Os Ratos.A energia desta carta representa a afeição num sentido possessivo. Também o logro e as tramoias estão associados a esta energia. O Diabo é representado pelo anjo caído literalmente. No conto “Seminário dos Ratos”, o chefe de relações-públicas está em conferência quando o cozinheiro vem adverti-lo de que ratos invadiram a cozinha e comeram todo o jantar, além dos fios dos carros e dos telefones. Numa tentativa vã, o chefe quer convencer o cozinheiro a improvisar um jantar, mas este está apavorado e foge junto com todos os outros. Quando se vê só, os ratos atacam o gabinete e ele já não tem tempo de fugir. Corre, então, para a cozinha e se esconde na geladeira. Quando não ouve mais nada, ele foge da casa e, ao olhar para trás, vê que o casarão está iluminado como se os ratos estivessem em reunião. Fazendo uma ponte ao conto “As Formigas”, que também se organizam, mas para outros fins, os ratos deste conto representam a fome, o desejo profundo da posse a qualquer custo e pode ser visto como uma grande crítica à política brasileira e aos seus ratos famintos. |
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16. A Torre – Disseminação. Fim de ciclo. Morte. |
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Raquel. A carta da Torre é a do abatimento, da destruição. A energia desta carta é representada pela Torre de Babel vindo abaixo. Raquel, no conto “Venha Ver o Pôr do Sol”, é ludibriada por seu ex-namorado Ricardo que, através de uma história envolvente, a leva para um cemitério abandonado e a prende em uma catacumba. Raquel está tão envolvida pela vida luxuosa que seu namorado atual oferece, que o “brilho dessa purpurina” lhe ofusca a visão de tal maneira que ela não consegue ler os sinais de perigo enquanto, obediente e sem resistência, acompanha o ex-namorado para o seu cadafalso e o seu fim. |
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A lição desta carta e deste conto é a destruição e o fortalecimento. Dos escombros, uma Fênix pode nascer. |
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17. A Estrela – Iluminação, boa sorte, cura. |
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A Estrela de Papel Prateado. A carta da Estrela representa a energia da boa sorte. No conto “Dezembro no Bairro”, temos o personagem Maneco, um moleque pobre e doente, traído pelos amigos (que zombam de seu pai que trabalha como papai-noel), mas que, mesmo assim, corta as estrelas prateadas para o presépio que os amigos querem fazer. Maneco falece no final do conto e, em meio às lágrimas, tenta esconder a estrela prateada. Porém, seus amigos percebem e, aqui, a energia da cura acontece depois que o conto acaba. O leitor que conhecer Maneco nunca o esquecerá. Do mesmo modo, acredito que os garotos que viram a estrela sofreram uma transformação e naquela noite amadureceram. Só Maneco sabia cortar as estrelas. E seus amigos, no momento de sua morte, receberam a sua iluminação. |
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18. A Lua – Jornada, oscilações. |
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Lua Crescente em Amsterdã. A Lua representa as oscilações e os equívocos que cometemos quando a situação não se mostra cheia e seu outro lado está oculto. No conto “Lua Crescente em Amsterdã” temos um jovem casal, ela com energia de borboleta e ele de passarinho, passeando em Amsterdã numa noite de lua crescente. Através de um conto poético e efêmero que pode se desfazer numa pirueta, esta história e esta carta ensinam que não devemos chegar a conclusões precipitadas, pois sempre haverá o ponto de vista do outro, o lado oculto da lua que deve ser considerado. |
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19. O Sol – Luz, esplendor. |
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Conrado e André, o vulto e o olhar dourado que se apagam. A energia do Sol é de iluminação e esta carta é representada pela luz do sol. Conrado, no romance “Ciranda de Pedra”, é o sol da vida de Virgínia, enquanto que André, no romance “Verão no Aquário”, é o sol da vida de Raíza. |
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Tanto Virgínia quanto Raíza são duas jovens pela metade, acreditando que Conrado e André são a sua outra metade. Entretanto, quando Virgínia descobre que Conrado é impotente e decide partir para uma longa viagem, ela se despede dele observando seu vulto ao longe sendo apagado pelo pôr do sol. Do mesmo modo, o olhar dourado de André apaga-se com a sua morte. A lição desta carta e destas personagens é de iluminação, pois quando o sol de Conrado e de André se apaga, tanto Virgínia quanto Raíza encontram suas duas outras metades nelas mesmas e acendem a sua luz interior. |
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20. O Julgamento – Avaliação, prestação de contas. |
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Marina.A carta do Julgamento está ligada à energia do juízo final e é representada por dois anjos tocando trombetas num cemitério, para acordar os mortos. Neste arcano, tudo que vem à tona é cobrado. No conto “A Sauna”, Marina é a esposa do narrador que contou demais sobre a sua juventude e sobre a mulher que ele amou. “Eu não fazia ideia de que fosse tão sagaz assim. E que tivesse essa memória, acho que falei demais, se me casasse de novo só abriria a boca para pedir o saleiro.” Diante das confissões que o narrador fez ao longo de sua vida, a esposa cobra, faz perguntas afirmativas e quer todos os detalhes. A lição desta carta e desta personagem é enfrentar as ações sem rodeios, ter coragem de assumir os “erros” e estar pronto para pagar por eles. |
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21. O Mundo – Culminação, fechamentos. |
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A Bolha de Sabão. As bolas de sabão. Película e oco. Bolas de sabão com mil olhos mas que eram cegas. No conto Bolas de Sabão, a escritora conta que A Estrutura da Bolha de Sabão, foi de todos o conto mais difícil e o que mais a fez sofrer. A carta do mundo geralmente vem representada pelo desenho do planeta Terra. Uma bola de sabão... E para Lygia, a representação do amor... Neste conto A Estrutura da Bolha de Sabão a narradora ama um físico que estuda a estrutura da bolha de sabão, do qual se separou há anos e que hoje está casado. A esposa naturalmente sente ciúmes desta amizade que ela não alcança a profundidade. Porém, no momento que o físico adoece e a narradora vai visitá-lo a esposa os deixam a sós. Aqui temos a energia de culminação e fechamento da carta do mundo muito bem representada. Num ato de extremo amor e solidaridade, a esposa permite a despedida do casal. Aqui fechamos o ciclo e ela compreende o que faltava. “Agora ela sabia que ele iria morrer.” |
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O conto "Bolas de Sabão" encontra-se no livro "Conspiração de Nuvens" que, junto com os livros "Invenção e Memória" e "Durante aquele estranho chá", fazem parte de uma sui generis auto biografica que é narrada em contos distribuídos nestes 3 livros. |
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Estes contos são costuras de lembranças, não possuem ordem cronológica e nem sempre retratam o passado da autora literalmente. Ela conta que essas memórias são parte invenção e parte lembranças, algumas como foram mesmo, outras como ela gostaria que tivessem sido. No conto "Bolas de Sabão" ela narra um encontro com seus leitores e explica um pouco seu processo de criação literária. Num determinado momento confessa ao seus leitores que o seu conto mais difícil de escrever foi "A Estrutura da Bolha de Sabão" no qual este físico a beira da morte tem um último encontro com sua amante com a permissão da esposa. |
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Com este ensaio comparativo entre os arcanos maiores do tarot e a obra de Lygia Fagundes Telles, gostaria de salientar a ponte deste sistema de jogo, da obra de Lygia e de várias outras obras literárias para o autoconhecimento. Ainda que isto seja uma busca solitária, um caminho que devemos percorrer silenciosamente, o tarot e a obra literária podem – simbolicamente – nos guiar para nossa própria voz interior e, posteriormente, para a voz coletiva. O autoconhecimento é o primeiro passo. Como dizem os alquimistas “Viaja ao centro da Terra, retificando-te, e encontrarás a pedra filosofal.” No derradeiro instante, o verdadeiro encontro é com a gente mesmo. Por isso, devemos olhar para a vida como se ela fosse um quadro surrealista: ainda que às vezes as coisas nos pareçam desordenadas e sem muita lógica, a direção está lá e necessita apenas um olhar mais profundo. E quando alcançamos a essência dessa observação e o cerne dessa compreensão, tudo fica claro e passa a fazer sentido. |
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Contato com a autora:
Cláudia Ferrari é licenciada em Língua e Literatura Portuguesa e Brasileira pela USP.
É autora do romance American Bar publicado pela Ed. América Literária, em 2006.
Entre vários escritos, tem a peça Take Me With You, escrita em parceria com o
dramaturgo italiano Mario Fratti, publicada nos EUA pela S.S.Literary Agency em 2011.
Para mais informações, consultas, cursos, palestras e eventos:
www.clauferrari2003.wix.com/clauferrari#!gallery
Outros trabalhos seus no Clube do Tarô: Autores |
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Revisão: Ivana Mihanovich
Edição: CKR – 25/05/2015
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