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Canção dos Caminhos. Os arcanos de Cecília Meireles |
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Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada. |
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Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas
de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga
o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto
à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas
que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria existência,
e contemplei-a
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Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera. |
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DEUSA dos olhos volúveis
pousada nas mãos das ondas:
em teu colo de penumbras,
abri meus olhos atônitos.
Surgi do meio dos túmulos,
para aprender o meu nome.
Mamei teus peitos de pedra
constelados de prenúncios.
Enredei-me por florestas,
entre cânticos e musgos.
Soltei meus olhos no elétrico
mar azul, cheio de músicas.
Desci na sombra das ruas,
como pelas tuas veias:
meu passo – a noite nos muros –
casas fechadas – palmeiras –
cheiro de chácaras úmidas –
sono da existência efêmera.
O vento das praias largas
mergulhou no teu perfume
a cinza das minhas mágoas.
E tudo caiu de súbito,
justo com o corpo dos náufragos,
para os invisíveis mundos.
Vi tantos rostos ocultos
de tantas figuras pálidas!
Por longas noites inúmeras
em minha assombrada cara
houve grandes rios mudos
como os desenhos dos mapas.
Tinha os pés sobre flores
e as mãos presas, de tão puras.
Em vão, suspiros e fomes
cruzavam teus olhos múltiplos
despedaçando-se anônimos,
diante da tua atitude.
Fui mudando minha angústia
numa força heróica de asa.
Para construir cada músculo,
houve universo de lágrimas.
Devo-te o modelo justo:
sonho, dor, vitória e graça.
No rio dos teus encantos,
banhei minhas amarguras.
Purifiquei meus enganos,
minhas paixões, minhas dúvidas.
Despi-me do meu desânimo –
fui como ninguém foi nunca..
Deusa dos olhos volúveis,
rosto de espelho tão frágil.
Coração de tempo fundo,
– por dentro das tuas máscaras,
meus olhos, sérios e lúcidos,
viram a beleza amarga.
E esse foi meu estudo
para o ofício de ter alma;
para entender os soluços,
depois que a vida se cala.
– Quando o que era muito e único
e, por ser único, é tácito. |
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Sou Nabucodonosor
que sonhou e se esqueceu!
Oh! venha, seja quem for,
dizer que sonho era o meu!
Venha! que me morro, por
um sonho que se perdeu!
(Veio o moço Baltasar,
mostrou-me a sua visão:
uma testa de ouro, no ar,
uns pés de barro, no chão.
E ferro – do calcanhar
à altura do coração!)
Bendito seja o Senhor,
que o esquecimento me deu!
Que era mau sonho, este, meu,
de Nabucodonosor! |
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Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
Também!
A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo – e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?
Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus... E ninguém
entende o que se está contando
e a quem...
Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima em queixas.
Amém. |
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DEIXA-TE estar embalado no mar noturno
onde se apaga e acende a salvação.
Deixa-te estar na exalação do sonho
sem forma:
em redor do horizonte, vigiam meus
braços abertos,
e por cima do céu estão pregados
meus olhos, guardando-te.
Deixa-te balançar entre a vida e a morte,
sem nenhuma saudade.
Deslisam os planetas, na abundância
do tempo que cai.
Nós somos um tênue pólen dos mundos...
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Deixa-te estar neste embalo de água geando círculos.
Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em
[figuras ambíguas.
Nem é preciso fazer nada, para se estar na alma de tudo.
Nem é preciso querer mais, que vem de nós um beijo eterno
e afoga a boca da vontade e os seus pedidos... |
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Dia claro,
vento sereno,
roda, meu carro,
que o mundo é pequeno.
Quem veio para esta vida,
tem de ir sempre de aventura:
uma vez para alegria,
três vezes para a amargura.
Dia claro,
vento marinho,
roda, meu carro,
que é curto o caminho.
Riquezas levo comigo.
impossível escondê-las:
beijei meu corpo nos rios,
dormi coberto de estrelas.
Dia claro,
vento do monte,
roda, meu carro,
que é perto o horizonte.
Na verdade, o chão tem pedras.
mas o tempo vence tudo.
Com águas e vento quebra-as
em areias de veludo... |
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Ó tempos de incerta esperança
que assim vos desacreditastes!
Cresceram nuvens sobre a lua
e o vento passou pelas hastes.
Vinde ver meu jardim sem flores
no presente nem no futuro.
e a mão das águas procurando
um rumo pelo solo escuro!
Vinde ouvir a história da vida
no sopro da noite deserta.
Caíram as sombras das vozes
dentro da última estrela aberta.
Ai! Tudo isso é a letra do horóscopo...
E só tu, Estátua, resistes!
– Mas, embora nunca te quebres,
terás sempre os olhos mais tristes. |
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IMENSAS noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.
Este rugido das águas
é uma tristeza sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...
E a névoa desmancha os astros,
e o vento gira as areias:
nem pelo chão ficam rastros
nem, pelo silêncio, estrêlas.
A noite fecha seus lábios
— terra e céu — guardado nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.
Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia. |
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O TEMPO gerou meu sonho na mesma
roda de alfareiro
que modelou Sírius e a Estrela Polar.
A luz ainda não nasceu, e a forma
ainda não está pronta:
mas a sorte do enigma já se sente respirar.
Não há norte nem sul: e só os ventos
sem nome
giram com o nascimento – para o fazerem
mais veloz.
E a música geral, que circula nas veias
da sombra,
prepara o mistério alado da sua voz. |
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Meu sonho quer apenas o tamanho da minha alma,
– exato, luminoso e simples como um anel.
De tudo quanto existe, cinge somente o que não morre,
porque o céu que o inventou cantava sempre eternidade
rodando a sua argila fiel. |
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A Diogo de Macedo |
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ESTA é a dos cabelos louros
e da roupinha encarnada,
que eu via alimentar pombos,
sentadinha numa escada.
Seus cabelos foram negros,
seus vestidos de outras cores,
e alimentou, noutros tempos,
a corvos devoradores.
Seu crânio está vazio,
seus ossos sem vestimenta,
– e a terra haverá sabido
o que ela ainda alimenta.
Talvez Deus veja em seus sonhos
– ou talvez não veja nada –
que essa é a dos cabelos louros
e da roupinha encarnada.
Que do alto degrau do dia
às covas da noite, escuras,
desperdiçou sua vida
pelas outras criaturas... |
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