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    | Canção dos Caminhos. Os arcanos de Cecília Meireles |  
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          | Eu vim de infinitos caminhos,e os meus sonhos choveram lúcido pranto
 pelo chão.
 Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
 essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
 porque vinha de um coração?
 E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
 do pranto que caiu dos meus olhos passados,que experiência, ou consolo,
 ou prêmio alcançarão?
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          |                        A Ester de Cáceres Meus pés, minhas mãos,meu rosto, meu flanco,
 – fogo de papoulas!
 E hoje, lírio branco!
 Pela minha boca,por minhas olheiras,
 – arroios partidos!
 E hoje, albas inteiras!
 Eu era o guardadode sinistras covas!
 E hoje visto nuvens
 cândidas e novas!
 Vi apodrecendo,com dor, sem lamento,
 meu corpo, meu sonho
 e meu pensamento !
 E hoje, sou levadopor entre as caídas
 coisas, – transparente!
 (Aroma sem nardo!
 Fuga sem violência!)
 E de cada ladochoram doloridas
 mãos de antiga gente.
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          | O denso lago e a terra de ouro:Sonho muito, falo pouco.até hoje penso nessa luz vermelha
 envolvendo a tarde de um lado e de outro.
 E nas verdes ramas, com chuvas guardadas,
 e em nuvens beijando os azuis e os roxos.
 Perguntava a sombra: “Quem há pelo teu
 rosto?”
 “Que há pelos teus olhos?” – a água
 perguntava.
 E eu pisando a estrada, e eu pisando
 a estrada,
 vendo o lago denso, vendo a terra de ouro,
 com pingos de chuva numa luz vermelha…
 E eu não respondendo nada.
 Tudo são riscos de louco
 e estrelas da madrugada…
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          | HOMEM vulgar! Homem de coração mesquinho!
 eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
 Dobra essa orelha grosseira, e escuta
 o ritmo e o som da minha gargalhada:
 
 Ah! Ah! Ah! Ah!
 Ah! Ah! Ah! Ah!
 
 Não vês?
 É preciso jogar por escadas de mármore
 baixelas de ouro.
 Rebentar colares, partir espelhos, quebrar
 cristais,
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        |  | vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,destruir as lâmpadas, abater cúpolas,
 e atirar para longe os pandeiros e as liras...
 
 O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.
 
 Mas é preciso ter baixelas de ouro,
 compreendes?
 – e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
 E as lâmpadas. Deus do céu!
 E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...
 Escuta bem:
 
 Ah! Ah! Ah! Ah!
 Ah! Ah! Ah! Ah!
  Só de três lugares nasceu até hoje esta música heróica:do céu que venta,
 do mar que dança,
 e de mim.
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          | E aqui estou, cantando.
 Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
 deixa seu ritmo por onde passa.
 
 Venho de longe e vou para longe:
 mas procurei pelo chão os sinais do
 meu caminho
 e não vi nada, porque as ervas cresceram
 e as serpentes andaram.
 
 Também procurei no céu a indicação de uma
 trajetória,
 mas houve sempre muitas nuvens.
 E suicidaram-se os operários de Babel.
 
 
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        |  | Pois aqui estou, cantando.
 Se eu nem sei onde estou,
 como posso esperar que algum ouvido me escute?
 
 Ah! se eu nem sei quem sou,
 como posso esperar que venha alguém gostar de mim?
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          | LINDA é a mulher e o seu canto,Mas o mundo está dormindoambos guardados no luar.
 Seus olhos doces de pranto
 -- quem os pode enxugar
 devagarzinho com a boca,
 ai!
 com a boca, devagarzinho...
 
 Na sua voz transparente
 giram sonhos de cristal.
 Nem ar nem onda corrente
 possuem suspiro igual,
 nem os búzios nem as violas,
 ai!
 nem as violas nem os búzios...
 
 Tudo pudesse a beleza,
 e, de encoberto país,
 viria alguém, com certeza,
 para fazê-la feliz,
 contemplando-lhe alma e corpo,
 ai!
 alma e corpo contemplando-lhe...
 em travesseiros de luar.
 A mulher do canto lindo
 ajuda o mundo a sonhar,
 com o canto que a vai matando,
 ai!
 E morrerá de cantar.
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          | Alta noite, o pobre animal aparece no morro, em silêncio.
 O capim se inclina entre os errantes vaga-lumes;
 Pequenas asas de perfume saem de coisas
 invisíveis:
 No chão, branco de lua, ele prega e desprega
 as patas, com  sombra.
 Prega, desprega e pára.Deve ser água, o que brilha como estrela, na terra plácida.
 Serão jóias perdidas, que a lua apanha em sua mão?
 Ah!... não é isso...
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        |  | E alta noite, pelo morro em silêncio, desce o pobre animal  sozinho. Em cima, vai ficando o céu. Tão grande. Claro. Liso.Ao longe, desponta o mar, depois das areias espessas.
 As casas fechadas esfriam, esfriam as folhas das árvores.
 As pedras estão como muitos mortos: ao lado um do outro, mas
 estranhos.
 E ele pára, e vira a cabeça. E mira com seus olhos de homem.
 Não é nada disso, porém...
 Alta noite, diante do oceano, senta-se o animal, em  silêncio.Balançam-se as ondas negras. As cores do farol se alternam.
 Não existe horizonte. A água se acaba em tênue espuma.
 Não é isso! Não é isso!Não é a água perdida, a lua andante, a areia exposta...
 E o animal se levanta e ergue a cabeça, e late... late...
 E o eco responde. Sua orelha estremece. Seu coração se derrama na noite.Ah! Para aquele lado apressa o passo, em busca do eco.
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          | No mistério do Sem-Fim, equilibra-se um planeta.
 E no planeta um jardim, e no jardim um canteiro;
 no canteiro uma violeta,
 e, sobre ela, o dia inteiro,
 entre o planeta e o Sem-Fim,
 a asa de uma borboleta.
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          | A vida só é possívela vida só é possívelreinventada.
 
 Anda o sol pelas campinas
 e passeia a mão dourada
 pelas águas, pelas folhas...
 Ah! tudo bolhas
 que vem de fundas piscinas
 de ilusionismo... – mais nada.
 
 Mas a vida, a vida, a vida,
 a vida só é possível
 reinventada.
 
 Vem a lua, vem, retira
 as algemas dos meus braços.
 Projeto-me por espaços
 cheios da tua Figura.
 Tudo mentira! Mentira
 da lua, na noite escura.
 
 Não te encontro, não te alcanço...
 Só – no tempo equilibrada,
 desprendo-me do balanço
 que além do tempo me leva.
 Só – na treva,
 fico: recebida e dada.
 
 Porque a vida, a vida, a vida,
 reinventada.
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          | SEUS curvos pés em movimentoeram luas crescentes de ouro
 sobre nuvens correndo ao vento.
 Como no jogos malabares,ele atirava o seu tesouro
 e apanhava-o com a mão nos ares...
 Era o seu tesouro de estrelas,de planetas, de mundos, de almas...
 Ele atirava-o rindo pelas
 Imensidões sem horizontes:tinha todo o espaço nas palmas
 e o zodíaco em torno a fronte.
 Eu o vi dançando, ardente e mudo,a dança cósmica do Encanto.
 Unicamente abismo – tudo
 quanto no seu cenário existe! Que vale o que valia tanto?
 Eu o vi dançando e fiquei triste...”
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          | Por aqui vou sem programa,sem rumo,
 sem nenhum itinerário.
 O destino de quem ama
 é vário,
 como o trajeto do fumo.
 
 Minha canção vai comigo.
 Vai doce.
 Tão sereno é seu compasso
 que penso em ti, meu amigo.
 – Se fosse,
 em vez da canção, teu braço!
 
 Ah! mas logo ali adiante
 – tão perto! –
 acaba-se a terra bela.
 Para este pequeno instante,
 decerto,
 é melhor ir só com ela.
 
 (Isto são coisas que digo,
 que invento,
 para achar a vida boa...
 A canção que vai comigo
 é a forma de esquecimento
 do sonho sonhado à toa...)
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